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Quinta-feira, 27/7/2006
Horizonte perdido
Elisa Andrade Buzzo


foto: Sissy Eiko

Aqui na cidade sinto falta de uma linha de horizonte, de uma natureza exagerada, arrebatadora, saída de romance indianista. Sentir em desabrigo a fúria de uma tempestade, sem toda essa parafernália que a vida urbana proporciona. Ou restringe. Não esquecer que afinal não há nada acima da cabeça (ainda que o teto do apartamento crie a ilusão de abrigo), apenas o todo e vazio negro. E a única proteção concreta é a das mãos em reflexo. Ver a lua, lembrar que somos mais um ponto (pálido?), sondar os mistérios do universo.

Sou toda urbana, distanciada de mim mesma. A urbe é bell jar de Sylvia Plath, arcaica abóbada celeste medieval - mas o céu aqui nem é abaulado, são pontas de ferro empinadas de orgulho paulistano pela riqueza e altura gratuitas. Pontas de lança. Pontas que já espetam. Vaidade vazia.

Na busca por um traço de céu, procuro alguns dos edifícios mais altos da cidade para clarear meus olhos míopes. Enxergar as cidades devastadas dentro dessa metrópole que vai se demolindo e se reerguendo a cada piscar de olhos. Haverá algo que eu ainda possa ver da mesma maneira que um habitante de seus primórdios?

Subir os lances da escada ao lado da estação Vergueiro do metrô tirava o fôlego e dava a sensação de que uma altura considerável estava sendo enfim alcançada. No décimo andar de um prédio comercial na Praça Santo Agostinho, beber água no final do expediente era um pretexto para comer minha fatia diária de céu. Tudo cinza, começando a resplandecer, era o que as grandes janelas de vidro diziam. Enquanto o céu anoitecia, a cidade amanhecia num brilho de colar de pérolas. No longe aquele desenho em lápis mole era fixo, calmo; pois a cidade vista assim das alturas é massa amorfa, os problemas parecem menores, os desenganos se amenizam, e mais, os olhos descansam numa sensação de liberdade que apenas a altura proporciona (ou que apenas ver a própria gaiola em amplitude representa).

Vejo uma dama de família quatrocentona apoiando um cálice na mureta ainda pouco cinza de poluição no terraço do Edifício Martinelli. Era um tempo em que os grã-finos circulavam pelo centro da cidade. Ela meneia a cabeça para trás num movimento sensual - pescoço alvo, dentes à mostra, cabelos ao vento - sua risada longínqua e estridente é o som presente de buzinas.

Milhões de murmúrios, lagartos, trânsito, conversas, balões, cobras, juras de amor, tráfico, pactos, pássaros também sobem com o ar quente. O resultado é um zunido incessante e não há mais como dissociar as partes desse todo silenciosamente barulhento. Sinfonia aleatória, doce assim do alto - apenas solta no ar, encontrando o ápice, o invisível cálice.

O ambiente do terraço, a 30 andares acima da terra firme é propício para declarações contundentes, comícios, atos grandiosos. Hoje seguranças acompanham os visitantes ao local, ainda que ninguém mais vá até lá com segundas intenções, a não ser em busca do mágico horizonte, da visão aérea privilegiada: corpo nu de mulher estendido é a cidade ao norte sul leste oeste. Enfim poder visualizá-la até onde a vista alcança, e então pontilhar a retina do perdido que sempre fora visto. Nem chego perto da sacada, o máximo que faço é apoiar as mãos e resistir ao "venha", bala puxa-puxa lançada pela mulher.

Como hoje alguém se arriscaria ao embalo dos andares-nuvens se a queda é inevitável e o tempo presente não tem a maciez da nostalgia?

Um lugar garantido no Paraíso pode ser tão direcionado às classes mais robustas quanto na época da venda de indulgências. Haveria local melhor para satisfazer meu intento de contemplar a linha de São Paulo do que o edifício mais alto da cidade? 46 andares. Plantado na beleza sombria e folhuda da Avenida Ipiranga desde 1965. Edifício Itália. Pois eu não contava com a rápida ação da hostess; é necessário completar uma chique e cara refeição (a tal indulgência versão descarnadas-asinhas-de-codorna-no-buffet) num restaurante para ter acesso à vista, ao firmamento mais badalado e menos público da cidade. Nem tão bonito assim, devo dizer...

Vê-se o milagre do concreto despontando pelas ruas em repentina miniatura. Finos canais aonde os autos percorrem, num também milagroso senso de direção diante de tantos caminhos-serpentina possíveis. É de cima que se vê o labirinto armado, que se avista o esqueleto do fura-fila com pernas magras, desajeitadas. Inúteis.

Bonito mesmo é aquele horizonte que surge ao motorista, numa das retas do Minhocão, em final de tarde como névoa tremelicante de luzes ou, nas noites claras, fantasma inalcançável. O edifício Altino Arantes tem carne, osso e uma linda bandeira, que embora à distância seja diminuta, olhando-a diretamente do mirante do edifício, é enorme, flutuante. E os movimentos do pano em dobras se sobrepõem ao ruído de fundo da cidade no acontecer diário. A bandeira do Estado de São Paulo pesa muito assim hasteada sobre 11 milhões de cabeças.

E é do Prédio do Banespa que surgem, como última cerca de natureza exuberante, montanhas marrons, negras, azuis. Antiga fortaleza de São Paulo de Piratininga.

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 27/7/2006

 

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