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Quarta-feira, 9/8/2006
Alívios diamantinos
Ana Elisa Ribeiro

Ouvi a manhã. Era tão diferente do batente da capital, que eu ouvi a manhã. Ela tinha, assim, um som de folhas misturado com certo cheiro de mato. Mas também não era bem isso, nem só isso. Tinha céu aberto, de um azul quase inexprimível. Além disso, as pedras imensas faziam as vezes de montanhas milenares e delas também exalava um cheiro de dureza histórica.

Ao ouvir a manhã, atentei logo para as cores. O céu aparecia bem acima do telhado. Pela fresta atrás das cortinas, visualizei o dia. Amplo como os dias na cidade não costumam ser. Os tempos e os intervalos todos tão diversos. Tão comparativamente outros. Outrossim. Anotei na agenda: não precisarei de você. Parti.

O café, com leite e frutas, era servido num salão de onde se divisava um imenso arredor de pedra. Uns o chamavam montanha, outros, Diamantina, outros ainda diziam Cruzeiro. Lá no alto, bem em cima, uma cruz revelava a altura.

Daqui se vê o segundo pico mais alto de Minas. A segunda cidade mais alta do Brasil. O primeiro vestígio desta vida de fugazes. O suco e o açúcar pareciam lentos. A porta aberta se transformava numa varanda aberta, como as que Oscar Niemeyer gostava de planejar. O limpo, a curva, o seco. E eu. Vendo as árvores retorcidas da paisagem amarelada. Em alguns lugares, o fogo havia lambido as mechas, restaram sombras pretas. Carlos Herculano Lopes, escritor das Gerais, me dizia, de dentro do ônibus: coitado do gado, por aqui o fogo acabou de passar. E os bois fingiam mascar chicletes.

De dez às doze eram horas amenas. De doze às quatorze, o atípico horário de almoço. De então para agora, o entardecer vagaroso dos altos de Minas. A escola, ao lado a botique, ao lado a lanchonete, ao lado a padaria, o Banco do Brasil, a curva, a descida, o mercado velho ao largo, o restaurante. Por acaso, almocei no Apocalipse. Queria ali um suflê de fim de mundo. Nem precisou. Atrás do prato com folhas e relvas, divisei, novamente, a varanda. Por trás dela, um horizonte de pedra, mas agora em pose diversa da sacada do hotel. Comi santificada. O tempo mugia. Era lento como um chuvisco. As duas horas de almoço, que na capital têm sentido de distância e de correria, pareciam uma tarde inteira.

A volta foi constante. Velocidade de caracol. Lojinhas, do outro lado o casaco, do outro, o cachecol. De dia, sol quente. De noite, intemperanças. Diamantina faz frio, mas só quando a noite se veste de padre. Até soneca pós-prandial teve gente que fez. Preferi passear pelos paralelepípedos históricos, catedral, Chica da Silva, apreensiva com os beirais, querendo comprar ímãs e pés de moleque. Inconstei por uns tempos. Bolo, chocolate de inverno, xícara quente, vapor, banho pelando. Diamantina favorece as horas. Escamoteei o retorno ao trabalho, mas nem precisava. Às quatorze em ponto eu estava lá, como se fosse precisa. Na capital, esses minutos são diamantes. Parecem dinheiro, quando vistos de perto. Em Diamantina, os minutos são eles mesmos, sem tirar nem pôr.

A tarde passou muda. Assim, como quem caminha ao lado. Nem pompa, nem relógios de parede. Fizemos poesia por horas a fio. Cada verso, uma tonteira boa. Às dezessete horas ainda era dia. Cheiro de chá. Nem o lanche parecia ter a pressa dos desafortunados. Diz Maria, poeta aposentada, que Diamantina é lenta. Não acho. Diamantina é o tempo. A capital é que avança sem terminar de acontecer as coisas. E a gente vai junto, envelhece antes do necessário.

Às dezoito é hora do pão de queijo, do queijo só. Talvez um banho, a tevê, os ares da noite querendo esfriar. O casaco rosa espera em cima da cama. O cobertor faz diferença. Banho daqueles que nublam o espelho. Toalha. No lugar das buzinas histéricas, dos cheiros de gás, toca um sino. O sino da igreja matriz. Toca várias vezes. Eu me surpreendo. Nem há carros na rua. Nem pessoas atravessam fora da faixa. Nem é hora de correr pelas avenidas. É hora de ouvir o sino, a Ave Maria e do pão quente.

Anoitece. E é hora de Jorge chegar com o coração cheio de flores. E me dá-las todas, dizer que nasceram sozinhas, que foram cultivadas durante a viagem, com o sol da estrada, e que não morrerão jamais. E eu acredito. Tomar caldo quente, fumegar nossos olhos, dormir como anjos diamantinos.

Série diamantina

I
Diamantina foi cravada
na pele
de uma montanha

II
Dia de calor
Noite de frio
Diamantina tem
temperamentos

III
Alinhavo árvores
nas montanhas
para alcançar
o céu de julho

IV
Lua e Sol, daqui,
não me parecem inimigos
Diamantina tece contrários

V
Imagens, retratos, palavras:
Álbum de alívios
diamantinos

VI
desci a rua
ladeira, altitude
até minha respiração
garimpou pedras preciosas

VII
almoce no Apocalipse
e experimente o suflê
de fim de mundo

Festival

ainda não ouvi pássaros
cantarem em coro
talvez estejam em oficinas

Ana Elisa Ribeiro
Diamantina, 9/8/2006

 

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