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Quinta-feira, 17/8/2006
Manoel de Barros: poesia para reciclar
Fabrício Carpinejar

Manoel de Barros tem uma letra miúda, a caligrafia emendada e tímida. Em um mínimo cartão, aproveita os dois lados, curte toda borda. Não desperdiça uma vírgula da resma.

Qualquer fresta é a festa do grafite. Com lupa, atinge-se o tamanho normal de leitura. A olho nu, é um canteiro de formigas no açúcar da folha. É necessário cheirar o papel para entender o que ele escreve.

Foi redigindo cartas que ele formou seu estilo e seu fôlego, que o transformou em um dos maiores poetas brasileiros do século 20. Durante 50 anos, desde o momento em que saiu de casa para estudar em colégio interno, contando suas notícias para a mãe Alice, pelo menos uma vez por semana, descobriu que suas frases e as dela tinham o mesmo tamanho: até 25 letras. Um influenciou o outro. Da troca materna, resultou na altura ideal do seu poema. "Minha mãe tocava violino e passou música para a linguagem", afirma o poeta. Ou, como ele mesmo confessa em um verso do seu mais recente livro, Poemas Rupestres: "Minha naturezinha particular: até onde o meu pequeno lápis poderia alcançar".

Não foi como advogado, profissão da qual desistiu por timidez e nervosismo ("Não conseguiria defender meus clientes, sequer me defendia"), muito menos como fazendeiro e criador de gado, herança do pai, João, que se tornou conhecido. Foi apontando o lápis cuidadosamente e limpando os óculos, acordando cedo e escutando as histórias de gente simples. O simpático senhor de cabelos brancos e de riso franco, com oito netos e três bisnetos, é despojado como uma casa de praia, longe de ser influenciado pelo sucesso e assédio de fãs e leitores.

Natural de Cuiabá (MT), Barros completa 90 anos daqui a alguns meses. "Fui longe", afirma. Nasceu em 19 de dezembro. "Posso curtir o ano inteiro antes do aniversário", pontua.

Seu amor pela mulher Stella, 84 anos, chega ser maior do que a própria vida. Estão casados há 58 anos. Ela é a primeira e única leitora de seus originais."Ela lê antes de enviar para a editora. Não mostro para mais ninguém. É bem crítica. Se ela não gosta, diz: 'Sobe e vai trabalhar mais'. Fico lá em cima de castigo durante oito ou nove meses. Desço somente quando ela define que está bom. Conhece meu estilo", diz.

A cumplicidade e a telepatia com a esposa são tão amadurecidas que Manoel de Barros não a identifica como "alguém fora dele". "Ela é alguém dentro de mim." Do casamento, tem três filhos: Martha, 54, que mora no Rio de Janeiro e já ilustrou suas obras, Pedro, 57, e João, 50, que atualmente residem com ele, no bairro Jardim dos Estados, em Campo Grande (MS).

Singeleza do orvalho
Manoel de Barros é um homem viajado, com cultura sólida, diferente dos rótulos que recebeu de "poeta do Pantanal" e "ecológico". É um poeta do Pantanal como seria de Copacabana. Viveu na Bolívia e no Peru, morou em Nova York por um ano, onde estudou cinema e pintura. "Virei um fã da pura expressão de Charles Chaplin", lembra. Residiu 40 anos no Rio de Janeiro, tempo em que se casou e se formou em direito. Só voltou para o Centro-Oeste do país em 1961. Mudou-se para Corumbá (MS), onde se fixou de tal forma que chegou a ser considerado corumbaense.

Grande parte de sua trajetória literária aconteceu nas sombras e no anonimato. Não sofreu do mal da pressa. Editava suas obras em tiragens artesanais e de escassa circulação. Teve o reconhecimento tardio, na década de 80, por críticos e personalidades como o dicionarista Antônio Houaiss, o escritor Millôr Fernandes e o editor Ênio Silveira.

Com 18 livros de poesia, dois infantis e um de prosa, hoje representa um dos poetas que mais vendem no país, editado em grandes tiragens e premiado com Jabuti, Nestlé e Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

O mínimo incomum
Poeta do simples e da delicadeza, adota a autenticidade dos defeitos, em vez de aceitar o polimento do senso comum. Joga pedras na vidraça da razão e fica no mesmo lugar para ouvir o estrondo. Ensina o homem a escoltar o crepúsculo, a respeitar o apogeu do chão, a não troçar dos andarilhos, dos abandonados e dos mendigos.

Tem estima pelas coisas e homens jogados fora pela sociedade. Tudo o que não presta serve para sua lírica. "Poesia não é para compreender, mas para incorporar", conceitua. Salva palavras do desuso. Retira as palavras da solidão dos verbetes e do asilo dos dicionários para morrerem em casa com a família.

Não tenta entender o que os pássaros cantam. É bobagem. Para falar com os pássaros, ele canta. Compartilha as linhas de seus cadernos com anhumas, pacus, graxas e beija-flores-de-rodas-vermelhas. A intimidade vem dos cuidados com o ínfimo. Sua simplicidade somente é cínica para defender a natureza, porém é encantada para falar da infância. Se fosse ave (e quem diz que não é?), seria o sabiá. "É manso, não atrapalha e canta melhor livre", comenta Barros.

Seu universo é do cisco, dos gravetos, dos "inutensílios" (expressão que criou para designar pertences abandonados) e dos "nadifúndios" (latifúndios do nada). "O cisco tem agora para mim uma importância de catedral" ("Retrato do Artista quando Coisa").

Sente-se à vontade em um terreno baldio ou monturo. Interessa-se pelos hábitos das lagartixas, lesmas e animais rastejantes. Rastejar é o movimento predileto de sua poesia, assim como pastar, carregar, montar. A motricidade em Barros é a da inclinação do bicho, para não perder nenhuma novidade e nuance do solo.

Menino aprendiz
O poeta formulou a Teologia do Traste, em que atua como catequizador e orientador do leitor. Passa uma lição de como participar do poema e do que precisa ser feito para ser poeta, a exemplo de "desaprender oito horas por dia ensina os princípios".

O poeta faz brinquedos verbais com osso de arara, canzil de carretas, potes furados, sabugos. Brinca mais ao imaginar o brinquedo do que ao desfrutá-lo. "Poesia é voar fora da asa" (O Livro das Ignorãças).

O escritor exerce a liberdade de despertar possibilidades da experiência, sem sofrer a cobrança de explicá- la. Ele se resguarda no escudo da ingenuidade. Atua no espaço do "faz-de-conta". O papel infantil revela a riqueza e as variações das imagens. Concede modalidades inéditas às coisas imprestáveis e forma lazeres com restos de brinquedos.

Sua poesia é magra, substantiva, come o essencial para se manter de pé. Com um andamento trôpego e dispersivo, elabora uma espécie de miniconto, pequenas histórias narrativas, em que mistura deliciosamente impressões, memórias e casos de diferentes fases da vida. Relaciona situações díspares com a gratuidade do sonho. Nem ele mais deve saber o que é real e o que é imaginado. Algo como colagens de revistas e jornais sobre os álbuns de fotografias da família.

Falar manoelês
A singularidade de sua poética reside em combinar a aguda percepção urbana com um repertório primitivo e rural. Tanto que fundou, de modo jocoso, o Idioleto Manoelês Archaico, dialeto usado por idiotas para falar com as paredes e com as moscas. Alma gêmea do gaúcho Mario Quintana, com o qual partilha a adesão pelo diminutivo, é tributário ainda da oralidade expressiva de João Guimarães Rosa, da "universidade do folclore" de Câmara Cascudo e do poeta Raul Bopp.

Barros reconhece as palavras como um relicário, destinado à adoração. Exerce a reverência ao natural. Em nenhuma forma interfere e modifica a beleza original da flora e da fauna. Almeja libertar-se dos condicionamentos sociais que bloqueariam a espontaneidade das vivências. Seus principais personagens, inspirados em personalidades reais de Campo Grande, como Bernardo da Mata, são autodidatas, afirmando que o verdadeiro conhecimento está na leitura do mundo. O que é descartado é jogado dentro do poema. Manoel de Barros vai colecionando desperdícios. O texto é feito sem vírgulas, num somatório implacável, sem diferenciação nítida dos itens arrolados.

Diga-se de passagem que Barros não está aí para os ditames do mercado. O que a sociedade de consumo preza ele despreza, e vice-versa. Não está interessado em repetir o cotidiano, mas em reciclá- lo. Um carro no ferro-velho, na sua teoria, tem mais valor que um novo. Alheio à vida útil do objeto, dedica-se à vida espiritual que se inicia no fim prático, quando o objeto é rejeitado.

Manoel de Barros desobedece as linhas. Sua letra miúda é letra de Bíblia. Letra de quem senta no canto do banco de praça e pede companhia para a vida que passa.

Nota do Editor
Texto originalmente publicado na revista Vida Simples. (Reproduzido aqui com autorização do autor e do editor.)

Fabrício Carpinejar
São Leopoldo, 17/8/2006

 

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