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Quarta-feira, 6/9/2006
Eu dirijo, e você?
Ana Elisa Ribeiro

O primeiro carro do meu pai foi um Chevrolet 1952. O carango azulão foi comprado quando o velho tinha lá seus 25 anos e trabalhava desde muito jovem. Apaixonado por carros, meu pai teve mais um monte de chevrolets e JKs. Era pobre, mas tinha mania de ter carro na garagem, numa época em que isso nem era tão comum.

Filho de operário e dona-de-casa, primogênito batalhador, responsável, tirava sempre os primeiros lugares nos colégios por que passou. Depois do segundo grau, foi trabalhar em banco. Na época, o Banco da Lavoura, hoje, Banco Real. Mas depois de uns anos nessa tarefa, resolveu fazer Medicina. Estudou, passou. Assim que se formou, casou-se com a minha mãe. E eu, nascida dois anos depois, na década de 1970, só me lembro dos dois JKs azuis (um claro e um escuro) e do Opala, também azul.

Sim, meu pai é cruzeirense. Mas nem acho que os carros azuis sejam por isso. Eram coincidência. Sorte do meu pai enxergar os azuis. Todos os meus tios, irmãos dele, são daltônicos. Um deles, que mora em São Paulo, só comprava carros pretos ou brancos, mais fáceis de definir.

Chevette (sedan e hatch), Monza e, depois, a paixão pela Volkswagen. Nem sei quantos Voyage. Foi nessa fase que eu aprendi a dirigir. Num Voyage Los Angeles, azulão, brilhante, com quarta marcha longa, aerofólio, rodas mascaradas. Uma barbaridade. O pai mais boy da rua. Voyage cinza, voyage preto, voyage bravo. Eram todos as paixões da minha vida também. Mas mal sabia meu pai que, antes dele, um namorado me dera as primeiras lições de direção. Primeira vez num Fusca 1986, série especial, 1.6, branco gelo. Bacana pilotar um Fusca. Depois, na terra de Guimarães Rosa, uma Parati verde. Quase deixei o carro batido na estrada de Sete Lagoas. Só mais tarde meu pai foi me ensinar a dirigir nas ruas ermas de perto de casa. Primeira marcha, morrer nas esquinas, baliza arriscada, Pare, terceira marcha nos quarteirões mais longos, nunca uma quarta, retrovisor, não olhar para o câmbio, não buzinar, não cumprimentar ninguém. Quando o risco ainda era alto, meu pai saía do carro e mandava que fizéssemos baliza nele mesmo. Uma piada. A baliza se mexia! Jamais estacionamos corretamente.

Desde muito jovens sonhamos com a Carteira Nacional de Habilitação. Era uma espécie de ritual pelo qual todos os filhos tínhamos que passar. Eu, primogênita, tinha que dar o exemplo. Não ganharíamos carro, jamais, mas ele poderia emprestar, até, de certa forma, funcionando o carango como moeda e objeto de chantagem e controle, que ele exerceu até o último minuto. Comprar um carro era ganhar liberdade.

Aos 15 anos, a vontade imensa de aprender a dirigir. Espere mais dois anos. Você ainda não tem responsabilidade. E eu assistia às balizas dele, à calma, à educação que ele tinha e ouvia os roncos dos motores. Acompanhava nas trocas de escapamentos e óleos. Sempre que o escapamento original se estragava, meu pai colocava um Kadron. E eu me orgulhava de passar pelas ruas com ele. Pai gostava de carro limpo: sem adesivos, sem gracinhas. Mas o barulho do motor dava mais charme ao ato de dirigir.

Aos 17 anos, ele me deu umas lições. Morri várias vezes e ele me xingava. Deixei para quando tivesse 18. No ano seguinte, ele perguntou se eu não tiraria a carteira. Mas você vai me emprestar o carro? Ele prometeu que sim. Tomei minhas lições e precisei de dois exames no DETRAN para ser aprovada. Num Voyage. Cheguei em casa buzinando e ganhei um beijo do meu irmão.

Dirigir era uma questão de gosto, de prazer. Até certo ponto, era algo obrigatório na família. Não havia questão quanto a isso. Fazer vestibular em universidade pública, ser honesto e dirigir eram pilares da cultura familiar. Um outro pilar era ser funcionário público, mas esse... dançou. A carteira de motorista era o óbvio.

A cidade cresceu. Belo Horizonte ficou violenta, muito violenta, em pouco tempo. Lembro-me bem das portas abertas e dos portões baixos. Das mães sentadas nas calçadas ao entardecer. Das varandas baixas, sem segurança. Ladrão tinha marca, jeito, cara, cor, sexo. Ladrão não se misturava. E eu, aos 19, rodava pela cidade, sozinha, de madrugada, com os dois vidros dianteiros abertos, completamente abertos, para sentir o vento frio. Parava em todos os sinais de trânsito e falava com os flanelinhas. Chegava e saía sozinha. Deixava o carro ligado na rua e ia comprar o jornal. Coisa que parece ficção na atualidade.

Dirigia com calma e descanso, ouvindo música, sem olhar para os lados, sem me atropelar, sem medo, sem lástima. Sem assalto, sem barulho e até sem engarrafamento. Piada. Em 5 anos, a situação se agravou de tal forma que tudo parece arriscado. Os carros são levados da porta de casa e as pessoas são mortas às duas da tarde. O carro já não tem espaço para tanta tranca e pega-ladrão. Os vidros escuros não deixam ver o motorista e o ar-condicionado é obrigatório. Roubam mais mulheres, a mão armada, carros com quatro portas, à luz do dia, a polícia dá conselhos para que você não reaja.

Mas dirigir era fundamental. Naquela casa, dirigir era inerente à vida da pessoa que morava numa cidade grande. De fato, lembro bem dos mais de 10 anos que passei pegando o ônibus do bairro. Também me lembro com nenhuma ternura dos milhares de minutos esperando, da falta de educação dentro do coletivo, dos carros estragados, dos motoristas, dos trocadores sem troco, da invenção do vale-transporte. Lembro bem do perigo e do tempo perdido.

Por outro lado, lembro que foram os anos em que mais li. Eram 50 minutos de casa na escola. 50 minutos de leitura intensa. Dos amigos que fiz. Dos namoros que começaram do ou no ônibus. Das cenas engraçadas. De aprender a cidade justamente porque aprendia os caminhos do diametral.

Mesmo depois que aprendi a dirigir, mantive certo afeto pela linha (extinta) que levou a mim e a meus amigos, por longos anos, ao colégio municipal. Tenho no escritório uma réplica do 1203. Um dos motoristas, mais tarde, foi meu aluno.

E a despeito da minha história com a direção de carros. A despeito da minha ansiedade por me tornar motorista. Do meu sacrifício para comprar meu primeiro Gol (verde, com Kadron). Meu choro incontido quando tive que vender meu Corsa (cinza, sedan). Minha alegria ao comprar meu novo Gol. Meu sonho com o Fox ou outro que me pareça bom. A despeito disso, quase todos os meus namorados não sabiam dirigir. Um verdadeiro carma budista. Era eu quem levava e buscava, ia e vinha. Era eu que abria as portas e era eu quem deixava em casa. Coisa esquisita.

Nesse tempo todo, namorei apenas um apaixonado por carros. Apaixonado até demais. Os outros, em sua maioria, nem sabiam onde ficava o motor. Inclusive meu marido, que ignora o que seja um hodômetro parcial (coisa que eu adoro, o hodômetro).

A paixão por ser motorista e, embora seja caro, a compreensão de uma vantagem em poder dirigir, não é, no entanto, uma paixão por carros. Não é curioso? Não me importo tanto com luxo e nem com status. Note-se que tenho um Gol pé duro. Gosto de motor e de som. Mas não gasto dinheiro com carro, até porque acho que a máquina não é investimento, vulnerável demais, desvalorizável demais. Gosto mesmo é de pilotar. E isto tudo era pra fazer um contraponto à crônica do meu amigo Carlos Herculano Lopes, escritor mineiro que não dirige e acha ótimo. Mas a quem já dei várias caronas...

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 6/9/2006

 

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