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Sexta-feira, 11/8/2006
Entre o tempo que passou e todo o tempo do mundo
Alexandre Inagaki

Juventude, transgressão, rebeldia contra o establishment, esperança ingênua de um dia mudar o mundo antes que ele nos mudasse - sim, todos nós já fomos jovens. E em se tratando de rock nacional, não há trilha sonora mais adequada para esta etapa da vida do que Legião Urbana.

Há alguns anos inscrevi-me numa lista de discussão sobre a Legião, na esperança de trocar idéias consistentes a respeito da discografia da banda. Porém, como era de se esperar, a lista estava apinhada de adolescentes ingênuos (expressão pleonasticamente redundante) que discutiam, dentre outras coisas, maneiras de mudar o mundo (por momentos pensei estar por engano em um fórum de militantes do PSTU). O mais irônico foi o lugar sugerido pelo grupo para discutir formas de "revolucionar o sistema": a praça de alimentação do shopping Paulista.

E hoje, cá estamos. O muro de Berlim caiu, a China bebe Coca-Cola e a figura mítica de Che Guevara virou estampa no biquíni da Gisele Bündchen. Enquanto nos anos 80 Cazuza questionava por uma ideologia pela qual viver, a tal Geração 00 não parece mais se importar com isso. Ao contrário, aparenta ter assimilado bem até demais essa era pós-utopias, focando seus ideais e objetivos na mera sobrevivência individualista. Aquele garoto que ia mudar o mundo já não senta em cima do muro: agora prefere escorar-se nele, enquanto faz uma pose blasé para um retrato a ser postado em seu fotolog.

Mas, por outro lado, o que dizer aos fãs da Legião que, de maneira pueril, planejavam mudar o mundo entre uma e outra mordida em seus Big Macs? Embora tenha me referido a eles com certa ironia, não posso deixar de respeitar adolescentes que ainda se mostravam capazes de canalizar seu ímpeto juvenil com atividades mais edificantes do que mandar e-mails defendendo o voto nulo ou alertando sobre vírus difundidos pelo Orkut. Além disso, admiravam um grupo que, ao contrário das bandas de rock atuais, cujas músicas parecem orbitar sobre duas únicas pautas (a saber: maconha e putaria), abordava assuntos efetivamente relevantes para a vida de alguém que está começando a se digladiar com temas como amor, espiritualidade e política. Não à toa, qualquer lançamento póstumo de Renato Russo e sua banda é sucesso garantido de vendas (após sua morte, a gravadora EMI-Odeon lançou cinco novos álbuns da Legião Urbana e dois da carreira solo de Renato), e volta e meia seu catálogo de músicas é revisitado por regravações e "tributos" à memória deste cantor e compositor falecido em 1996.

Em nada surpreende a constatação de que, para a desgraça dos tímpanos alheios, grande parte desses lançamentos não passa de oportunismo comercial. Guardadas as devidas proporções, são discos tão medíocres quanto os romances de Ernest Hemingway publicados postumamente (e vejam que o autor de O Velho e o Mar se matou porque se julgava incapaz de conseguir voltar a escrever qualquer livro decente; imaginem, pois, o que faria se soubesse que suas sobras de gaveta foram publicamente expostas). Vide "Mais Uma Vez", carro-chefe de Renato Russo Presente, segundo álbum póstumo do mentor da Legião lançado em 2003. Uma música de fazer sangrar ouvidos, com versos dignos de um compêndio vagabundo de auto-ajuda ("Se você quiser alguém em quem confiar/ Confie em si mesmo/ Quem acredita sempre alcança"), que conspurca a memória do compositor de "Os Barcos", "Metal Contra as Nuvens", "Sete Cidades", "Esperando por Mim", "Por Enquanto" e a minha predileta, "Andrea Doria", gravada no álbum que, como bem observou Alexandre Matias em sua ótima resenha, é consenso entre os fãs da Legião Urbana: Dois, de 1986.

Vinte anos depois, ao ouvir mais uma vez as 12 faixas de Dois, não posso deixar de constatar que algumas músicas que eu venerava aos treze anos de idade hoje soam ingênuas demais a um cara que hoje é mais cético e cínico do que gostaria de ser. Por exemplo, "Plantas Embaixo do Aquário", com refrão digno de passeata estudantil: "Não deixe a guerra começar/ Não deixe a guerra começar". Ou 'Fábrica'", cuja letra de típico engajamento juvenil assume o eu lírico de um operário: "Nosso dia vai chegar/ Teremos nossa vez/ Não é pedir demais/ Quero justiça/ Quero trabalhar em paz". É o álbum, ainda, de tempos nos quais o rock nacional ainda engatinhava em termos de produção. Dois é um disco de guitarras e baterias gravadas sem o devido punch, e teclados que por vezes irritam com sua onipresença em faixas como "Daniel na Cova dos Leões".

Mas o fato é que a Legião Urbana nunca se destacou pela excelência técnica de seus músicos. Seu sucesso, que perdura até hoje, provém da força das composições de Renato Russo. Que, é preciso destacar, foi um vocalista de voz expressiva e letrista acima da média, dons que foram ofuscados pela dramaticidade de sua vida pessoal e pelo caráter quase messiânico com que suas canções até hoje são recebidas pelos fãs. Dado Villa-Lobos, em entrevista concedida a Ricardo Alexandre para o livro Dias de Luta - O Rock e o Brasil dos Anos 80, destaca ainda a visão estrategista de Renato ao conceber os álbuns da Legião: "Era um profundo conhecedor da música pop, fosse Motown, fossem as últimas novidades da época. Entendia como um disco funciona, quais os ingredientes que têm de estar ali para despertar interesse". Renato possuía a consciência precisa do impacto que suas composições teriam sobre a geração Coca-Cola. Em outro trecho, o guitarrista da Legião completa sua reflexão: "Fazíamos muito sentido e éramos muito profundos, às vezes. As pessoas se identificavam de verdade com aquilo. Era uma mistura louca de raiva, energia, distorção, amor e convivência".

Dois abre com uma vinheta que simula alguém a mexer no dial de uma rádio. Entre chiados, o ouvinte atento que seguir o conselho do encarte ("ouça no volume máximo") reconhecerá um trecho da "Internacional Comunista" (certamente uma travessura com a Censura Federal, que acabou passando desapercebida por 99% das pessoas que ouviram o álbum) pouco antes da voz abafada de Renato entoar o verso emblemático de "Será": "Brigar pra quê/ Se é sem querer?". E então surge "Daniel na Cova dos Leões", canção na qual seu autor, que ainda não havia assumido publicamente sua condição sexual, faz várias referências metafóricas ao homossexualismo em uma música cujo título provém de uma história bíblica. Ao ser entrevistado por Leoni para o livro Letra, Música e Outras Conversas, Renato explica o porquê do nome da música: "É a situação da pessoa que está encurralada e tem que provar alguma coisa. É sobre ter que lidar com uma sexualidade que não é aceita. Tem aquelas imagens de ser barco a motor e usar remo (...) A imagem é essa: Daniel é inocente e é colocado no meio dos leões, só que os leões não o comem. Ele acalma os leões".

Após o momento mais confessional do álbum (ainda que disfarçado por inúmeras metáforas), a Legião tece verdadeiros mini-documentários sonoros que retratam os sonhos, dilemas e experiências de seu público-alvo. "Quase Sem Querer" é o polaroid imediato das perplexidades juvenis ("Tenho andado distraído/ Impaciente e indeciso/ E ainda estou confuso/ Só que agora é diferente/ Estou tão tranqüilo e tão contente"). Em "Acrilic on Canvas", Renato recorre aos materiais de pintura de sua irmã para compor uma amargurada canção de amor que parece ter sido destinada à mesma menina citada em "Ainda é Cedo", do primeiro álbum da Legião ("Fiz carvão do batom que roubei de você/ E com ele marquei dois pontos de fuga/ E rabisquei meu horizonte"). "Eduardo e Mônica" resgata a tradição do cancioneiro popular brasileiro de narrar historinhas por meio de músicas. "Metrópole", "Fábrica", "Plantas Embaixo do Aquário" e "Música Urbana 2" honram as origens punk do grupo de Brasília, com seus brados de revolta contra a violência, a injustiça social e a burocracia. "Índios", com sua letra desencantada sobre um futuro que "não é mais como era antigamente", acompanha por meio de um ritmo mântrico cuja melodia segue num crescendo até a dolorida queda ("Nos deram espelhos e vimos um mundo doente/ Tentei chorar e não consegui") o trajeto do último dos moicanos do romantismo. Entre estas canções, duas obras-primas.

"Tempo Perdido", primeiro single do álbum, foi precisamente definida por Hermano Vianna como "um dos momentos mais lindamente melancólicos da história da música pop". Um belo fraseado dedilhado na guitarra, seguido pelo vigoroso ataque das baquetas de Marcelo Bonfá, compõe a introdução desta canção sobre a efemeridade da vida ("Todos os dias quando acordo/ Não tenho mais o tempo que passou") e a esperança quase desesperada no amor como a maior transcendência possível diante da dor deste mundo ("Então me abraça forte/ E me diz mais uma vez/ Que já estamos distantes de tudo/ Temos nosso próprio tempo").

"Andrea Doria", por sua vez, é a melhor descrição já tecida, em todo o vasto universo pop, de todas as angústias, medos e ideais que cercam a fase da juventude. Quem nunca ouviu Legião Urbana, por desconhecimento, falta de interesse ou mero preconceito estético, deve atentar para esta canção que merece ser (re)descoberta, e não apenas pela acuidade de seus versos. Melodia, arranjo instrumental e o emocionante vocal de Renato compõem o mais bem-resolvido de todos os registros sonoros da Legião. Intitulada "Andrea Doria" por causa do navio italiano homônimo que afundou na madrugada do dia 26 de julho de 1956, esta é uma canção sobre naufrágios. No depoimento concedido ao livro supracitado de Leoni, Renato Russo explica que a inspiração da música surgiu a partir de uma conversa que teve com uma amiga, Tetê Tillet, descrita como "uma menina que sempre me deu força, mas que naquele instante estava derrubada". A letra é um diálogo entre os dois.

"Às vezes parecia que, de tanto acreditar
Em tudo que achávamos tão certo,
Teríamos o mundo inteiro e até um pouco mais:
Faríamos floresta do deserto
E diamantes de pedaços de vidro

Mas percebo agora
Que o teu sorriso
Vem diferente,
Quase parecendo te ferir"


"Andrea Doria" é o polaroid do momento preciso em que as utopias da juventude são irrefutavelmente confrontadas com tal mundo adulto. Porque crescer é um processo no qual pouco a pouco vamos nos desvencilhando dessas ilusões, acuados pelos espinhos de um mundo saturado de indivíduos céticos, cínicos, "vendendo fácil o que não tinha preço". E assim tornamo-nos "maduros", "responsáveis", largando sonhos pelo caminho até correr o sério risco de nos concentrarmos em apenas um: como arranjar dinheiro para pagar as contas.

Renato Russo continuaria abordando as questões de "Andrea Doria" em toda a sua discografia posterior, ao falar sobre a "ferrugem nos sorrisos" e "a estupidez de todas as nações", ou deixando seu lado lírico se sobressair ao falar em rabiscar "o sol que a chuva apagou". É desse equilíbrio entre a revolta punk e o lirismo pop que provém a explicação para a permanência de suas composições: nenhuma banda no rock nacional possui a mesma capacidade de falar de temas atemporais como a Legião Urbana.

Em "Esperando por Mim", faixa 13 de A Tempestade ou O Livro dos Dias, último álbum da Legião lançado antes da morte de seu mentor, encontro os versos que sintetizam a relevância de Renato Russo até hoje.

"Estamos vivendo
E o que disserem
Os nossos dias serão para sempre"


URBANA LEGIO OMNIA VINCIT

Nota do Editor
Alexandre Inagaki assina o blog Pensar Enlouquece, Pense Nisso.

Alexandre Inagaki
São Paulo, 11/8/2006

 

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