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Quarta-feira, 17/10/2001
Corrida de ratos (e outros roedores da tevê)
Daniela Sandler

Yara Mitsuishi

Na segunda-feira foi ao ar, na tevê norte-americana, o último episódio de mais um "reality show": Love Cruise. O programa juntou rapazes e moças solteiros com o objetivo de encontrar a cara-metade. É isso mesmo: ganhou o melhor casal de pombinhos - ao menos, o mais convincente. Love Cruise é mais um em meio a uma infinidade de "reality shows" temporários ou permanentes que estão no ar neste momento. Estão se institucionalizando, como seriados ou novelas. Será que isso aponta para uma nova tendência de público e mídia (a sede por hiper-realismo ou seja lá o que for)?

Não me parece que os "reality shows" sejam tão diferentes dos demais produtos que nos servem as redes de tevê - em especial no que se refere ao seu suposto diferencial, a tal sensação do evento imediato, "de verdade". Além disso, a função e o funcionamento desses programas apontam para tendências presentes talvez desde o princípio nos meios de representação audio-visual (cinema, rádio, tevê) e nos canais de comunicação de massa. É importante refletir sobre o assunto não apenas porque essas tendências são inquietantes em si mesmas, mas também no contexto específico desta nova e estranha guerra em que os Estados Unidos (e boa parte do mundo) estão se enfiando. Apesar de não haver espaço nesta coluna para tratar do tema, sinto-me no dever de registrá-lo como razão adicional deste texto.

Voltando a Love Cruise e ao mito de realidade desse e demais shows. O programa jogou com a ambigüidade de propósitos e caráter: foi premiado o amor de verdade? Ou os enamorados fingiram apenas para levar o prêmio? As dúvidas foram sugeridas pelo narrador dos anúncios do programa, classificado, em tom convidativo, como a novela da vida real: "real life soap opera" . "Dramas amorosos de verdade se desenrolando sob os seus olhos, em tempo real." Como se a gente pudesse aplicar a palavra "real" a um grupo de jovens ambiciosos reunidos num barco de luxo para uma gincana amorosa transmitida em cadeia nacional. De real, aí, só a volúpia do público e a ganância dos envolvidos na produção.

Igualmente artificiais são as situações estrambólicas criadas para a miríade de shows presentes e passados. Depois da excitação inicial de shows sobre a "vida cotidiana" (Big Brother e similares), talvez o público tenha se cansado de ver gente-como-a-gente vivendo vidinhas-comuns-sob-os-olhos-da-câmera. Não que tenham sido mais realistas esses primeiros shows: apenas seus temas eram menos conspícuos.

Para requentar a fórmula, no entanto, carrega-se no tempero - e haja ketchup. Num show recente, Lost, os participantes foram largados num ponto do mundo sem ter a menor idéia de onde estavam. Objetivo: chegar primeiro à Estátua da Liberdade, em Nova York, com quase nenhum equipamento de localização.

Os temas se desdobram: Lost e Amazing Race são os reality-shows turísticos; Survivor, o de eco-aventura (nesta semana estréia o mais novo, na África); Temptation Island e Love Cruise, os romântico-sexuais.

Quando até mesmo o tempero perde a graça, recorre-se à hipérbole. O novo Survivor é destinado a "você, que achou que os anteriores não tinham emoções fortes o suficiente." O narrador do anúncio continua: "veja o que as pessoas têm de fazer para continuar no jogo". A câmera mostra um homem prestes a beber um líquido vermelho-escuro. "Sangue puro! Terão de beber sangue puro!" Pois é - como eu disse, haja ketchup. No caso, curiosamente invertido...

O leque temático alcança uma audiência cada vez maior: tem para todos. Não surpreende: o que, afinal, não é - ou está - temático? Parque temático, lanchonete temática, loja temática, biscoito temático, salsicha temática (ou vai dizer que você nunca reparou nas bolachas com personagens de desenho animado ou nos frios e embutidos da Xuxa?). Mudam as caras e os cabelos, mas o recheio é o mesmo.

Além de alcançar mais gente, a embalagem nova garante audiência cativa. De fato, menos que a diversidade de temas, o que surpreende é a eficácia da estratégia: o público cai como peixe. Ao mesmo tempo afoito por novidades e afeito à segurança das coisas conhecidas, o espectador médio parece ter se viciado no voyeurismo sádico estimulado por esse tipo de programa. Esses shows devem mesmo provocar imenso deleite: não só no público, como também nos executivos e anunciantes que faturam com sua exibição.

Sem menosprezar a imaginação de criadores e produtores, as redes televisivas devem seu sucesso à admirável capacidade que a platéia tem de se encantar com tão pouco. Só isso explica a reedição de Temptation Island, devidamente repaginado como Love Cruise.

Ratinho daqui

A lista de programas que exploram esse viés é imensa e não se limita aos "reality shows". Versões moderninhas de "namoro na tevê", juízes de pequenas causas que transformam seus tribunais em circo, lavação de roupa suja em programa de auditório (Jerry Springer é o nome do "ratinho" daqui). Menos "show" e mais "reality", essas produções fazem de situações comuns o seu set de filmagem.

Talvez as pessoas tenham vidas chatas, estejam enlouquecendo de tédio ou solidão, e encontrem na televisão o prazer e a emoção que faltam em suas experiências pessoais (assistir à tevê é mais seguro e barato que fazer uma excursão na selva ou tentar achar um parceiro). Talvez seja uma maneira de compensar frustrações privadas: as imagens da menina levando um fora sob o escrutínio da câmera (a gente não sabe se a garota está sem graça pelo fora ou pela filmagem), ou do casal se estapeando, atiçado pelo auditório, consolam as almas frustradas, como a dizer: viu, há alguém pior que eu. Ou talvez seja perversão pura e simples: gratificação provocada pela visão da patricinha mastigando olhos de bode crus.

Seja como for, o olhar crítico chegou - ou melhor, tentou chegar - ao cinema. O filme Rat Race, que passou há um ou dois meses por aqui, prometia ser um retrato satírico dos reality shows, do voyeurismo e da ganância envolvidos. Um grupo variado de gente que se encontra em Las Vegas é sorteado para participar de uma competição organizada pelo mais poderoso dono de cassinos da cidade: ganha quem chegar primeiro a uma estação de trem numa cidadezinha no meio dos Estados Unidos, dentro da qual há uma mala com dois milhões de dólares.

O que os competidores não sabem é que o jogo foi armado para ser a modalidade mais extrema de aposta entre milionários viciados na jogatina. Entediados com os jogos de azar "normais", dedicam-se a rodas de apostas cada vez mais absurdas. Por exemplo, penduram um monte de arrumadeiras do hotel na armação das cortinas do quarto, e apostam dinheiro naquela que acham que cairá por último. Da mesma forma, apostam no competidor que chegará primeiro aos dois milhões. É como corrida de cavalos, só que com gente. Daí o nome do filme: Rat Race, uma alusão não tanto à corrida eqüina, que afinal guarda uma certa nobreza (ainda que decadente), mas à sua versão subalterna e degradada: a corrida de ratos.

A idéia do filme é ferina: os competidores, ávidos por dois milhões de dólares, são comparados a ratos (tudo por dinheiro!); os apostadores são milionários pervertidos que não sabem o que fazer com seu dinheiro enquanto o mundo cai ao seu redor; o dono do cassino é o inescrupuloso que tenta faturar em cima de ambos.

Imagino que a concepção original do filme tenha sido crítica, como indica a "mensagem social" no final. Infelizmente, a realização dilui a boa idéia, e a crítica se perde em meio a uma profusão de piadas imbecis e gags sem graça, na tentativa de conquistar público com riso fácil. (A ironia é esta: de novo, o triunfo do "tudo por dinheiro"...) As melhores cenas são mesmo as apostas hilárias dos milionários.

Sobremesa

Outro dia dei de cara com mais uma pérola da cultura gastronômica norte-americana. Um restaurante à beira do lago Ontário, instalado numa simpática e despojada casa de madeira com amplo terraço, ostentava orgulhosamente um letreiro com os dizeres:

"The Finest of Italian Cooking"

E embaixo:

"Home of Pasta in a Cup"

E eu pergunto: como é que um lugar que serve macarrão na xícara pode se intitular "O mais fino da cozinha italiana"? O Fasano que se cuide...

Daniela Sandler
Rochester, 17/10/2001

 

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