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Segunda-feira, 4/9/2006
Reflexão para eleitores
Ram Rajagopal

Estamos todos um pouco enfastiados com mais uma eleição presidencial que se aproxima, e todo aquele quiprocó tradicional que acompanha um pleito. Desde as promessas dos candidatos, as imagens de promessas não cumpridas em horário eleitoral, as tradicionais reclamações dos eleitores. Em geral, estes, os eleitores são os mais chatos de todos. Entre eles não há um que se encontre satisfeito ou em paz com as escolhas que fez na eleição anterior. Em geral, já tem uma longa lista do que o próximo candidato escolhido por ele tem que fazer, tem que deixar de fazer e assim por diante. Mas uma das perguntas que faz arder a língua é: o quanto o eleitor refletiu na escolha?

Para a maioria de nós, uma bela discussão em bar, embalisada por uma leitura diagonal de um jornal e por quitutes gostosos é reflexão mais do que suficiente para a escolha de um candidato. Imagine refletir sobre os nossos desejos sobre os candidatos. Isto nem pensar. Para a maioria das pessoas, a reflexão não é parte integral da vida, e sim uma pequena conveniência, que deve ser relegada aos ditos "tipos intelectuais". E muitos assumem seu tipo intelectual e passam suas vidas dia após dia refletindo na mesa de um bar, em alguma esquina de uma cidade como o Rio de Janeiro. Volta e meia, um destes filósofos de botequim aparecem no noticiário para nos alertar quanto a sua escolha eleitoral. Tá, eles aparecem mesmo em épocas sem eleição, dando seus infames palpites, que são somente a integração linguística do gosto do bolinho de bacalhau com o último pensamento da moda. Não pense que se tratam de desconhecidos também. Alguns balaurtes das artes nacionais se prestam a este deprimente papel.

Mas por que este tipo de situação vem se repetindo com cada vez mais freqüência? Por que acreditamos em pseudo-especialistas, que de especial tem somente seus contatos jornalísticos e midiáticos? Ora, a razão me parece relativamente simples: nós nos desacostumamos a refletir. A reflexão, como ferramenta para uma vida melhor, foi descartada do cotidiano de cada um. A reflexão é cada vez menos valorizada numa sociedade onde a pressa, a busca pelo prazer instantâneo, é encarada como a única forma possível de se construir uma vida para si mesmo.

O que é refletir? Refletir não é somente produzir palavras em cima de palavras ou pensamentos em cima de pensamentos, com opiniões sobre tudo o que se observa. Refletir é a capacidade de integrar nossas experiências com a observação sobre o cotidiano. É saber fazer um questionamento inteligente das nossas idéias e desejos. Em última instância, refletir significa aceitar que sua vida não é tão significativa assim para a sociedade, mas é muito significativa para si mesmo. Aquela que deveria ser uma ferramenta do nossos dia a dia, como bem expôs Luis Eduardo Matta em um outro artigo aqui do Digestivo Cultural, foi relegado a ser um fetiche de alguns.

Quase diariamente leio nos jornais e vejo na televisão, e no YouTube, que estamos vivendo a "era da informação". Mas sem reflexão, sem vivência, informação é somente uma coleção de dados inconclusivos, que servem de bagagem para que possamos discutir em uma mesa de bar. A informação só se torna formação, quando a entendemos sob a ótica de nossas idéias e princípios, se utilizando da tecnologia da reflexão. Infelizmente, o Google não vai fazer isso por você, apesar de vários músicos da MPB tentarem ser seu Google Oracle neste sentido...

Uma vez ouvi de um colega: "mas refletir parece tão chato...". Pois aí está mais um estereótipo que caracteriza qualquer ato de reflexão como sendo uma atividade parada, sem emoção, baseada em pura demagogia lógica, sem os verdadeiros saltos intuitivos e qualitativos que uma verdadeira busca reflexiva lhe oferecerá. A realidade é que quanto mais você reflete, menos você pensa mecanicamente. Como assim? Ora, menos você se atém a termos do discurso da sociedade, e mais você descobre seu próprio caminho, aquele onde você anda com naturalidade, onde suas idéias e intuições acontecem sem exigir grandes esforços. Como você pode ver, quando você reflete, você esta fazendo um favor a si mesmo, pois está tão somente formando um artigo de luxo chamado personalidade.

Não se engane, muitos professores por aí jamais refletem. Refletir não se dá por decreto ou por diploma, não depende de ideologia, não requer nem mesmo sequências lógicas de argumentos. Muitas vezes, podemos dar saltos intuitivos, ou podemos descobrir que estamos despreparados para entender um desejo ou idéia própria. Mas ao menos você terá a clareza de "saber que não sabe". É melhor ter a certeza da dúvida, do que ter a crença de que somos completamente sólidos e consistentes.

Esta é outra expressão que acompanha o discurso de muitas pessoas: temos que ser consistentes. Especialmente em época de eleição, muitos se utilizam do discurso da consistência para induzir você ao mesmo ralo anti-reflexivo aonde eles se meteram. Não, meus queridos, não precisamos ser consistentes. Na realidade, se você pensar bem, somos todos inconsistentes, porque nossos desejos mudam com o tempo, e a própria realidade muda de minuto a minuto, com cada evento novo que acontece. Seria a inconsistência o fim do mundo? Afinal o que é consistência?

Consistência é de certa forma o oposto da reflexão. Ser consistente significa ter seu comportamento atrelado a algum dogma mental com o qual você se acostumou. Na maioria das vezes significa tão somente agir de alguma maneira pré-determinada, de acordo com outras ações suas. Ou seja, se você faz ou aceita A, então necessariamente terá que fazer e aceitar B. Como vocês podem observar, a consistência é justamente o que ocorre na ausência de reflexão. E o resultado final daqueles que vivem uma vida consistente é uma profunda confusão mental, já que a realidade está mudando continuamente, as informações - hoje em tempo real - são novas a toda hora. Como agir com consistência, sem refletir, num mundo assim? Todos dogmas serão sempre triturados ao pó...

Neste novo mundo só há lugar para idéias que estão embasadas na experiência pessoal e na profunda reflexão. Ao menos deveria ser assim. Uma existência saudável deve se basear somente em idéias assim. Senão você está criando o veículo para continuar o ciclo de mesmice que observamos no cotidiano da sociedade: as mesmas reclamações de sempre, os mesmos protagonistas de sempre, e os mesmos problemas de sempre... De certa forma, estamos felizes e acostumados com estes problemas, e como sociedade decidimos que é melhor a tragédia sabida do que o inesperado que surge de uma resolução deles.

Numa sociedade em que, infelizmente, a maioria entre aqueles que podem se dar ao luxo de refletir, não o fazem, teremos sempre o atual panorama de desvairio que acompanha toda eleição, ou toda e qualquer discussão de idéias no país. Imagine então quando se trata de dar pitacos sobre leis e projetos que determinarão alguns dos rumos da sociedade... Tudo feito às cegas a maioria das vezes. Portanto, quando puder, tire um tempo consigo mesmo e reflita sobre suas idéias. Pense de onde elas vieram, por que você pensa daquele jeito, e que experiência pessoal sua embasa sua crença. Se entregue honestamente a este belo ato de contemplação.

E mais uma coisa, não acredite que pessoas veementes necessariamente refletiram sobre aquilo que defendem com unhas e dentes. Muito pelo contrário, minha experiência prática é que a maioria destes fanáticos e tipos intelectualóides jamais investiram mais do que alguns minutos para adotar um discurso. E muitas vezes o discurso adotado é mais por conveniência, por consistência, do que por ter surgido de uma intuição ou como consequência de uma reflexão... Podemos rapidamente identificar pessoas assim: em geral tem opiniões sobre qualquer assunto; Julgam qualquer experiência, mas sempre baseados em sua base pré-fabricada de idéias; E raramente sabem levar uma vida com bom humor e leveza. Para este tipo de pessoa nada é suficiente, nada é possível, nada é satisfatório, portanto a única saída é uma existência lamentável de filósofo de bar.

Qual é a vantagem em se ser filósofo de bar? Você não precisa de compromisso com suas idéias, não precisa aplicá-las no seu cotidiano, e muito menos arriscar o seu traseiro tentando ver se elas funcionam de verdade. É fácil falar, cobrar, e continuar escondido sob a fachada do anonimato. Se para cada filósofo de bar, existisse um cidadão disposto a tentar a administração pública com idéias embasadas em sua própria experiência, o ano de eleição seria de escolha entre várias boas opções, ao invés do cansativo embate entre dogmas ideológicos.

Ram Rajagopal
Berkeley, 4/9/2006

 

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