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Segunda-feira, 18/9/2006
Herzog e o grito de desespero humanista
Jonas Lopes

"Eu era como um pobre que mistura menos lágrimas a seu pão seco se diz a si mesmo que dali a pouco um estranho vai lhe deixar toda sua fortuna. Para tornar a realidade suportável, somos todos obrigados a alimentar algumas pequenas loucuras dentro de nós" (Marcel Proust, À Sombra das Moças em Flor).

Moses Herzog está em crise. Seu segundo casamento acaba de fracassar. Sua esposa Madeleine o trocou por seu melhor amigo, Valentine. Sua filha está a centenas de quilômetros de distância. Seu filho do primeiro casamento o vê como uma figura excêntrica, distante, ridícula. Longe dos dias de acadêmico brilhante, ele agora dá aulas para adultos em uma escola noturna. Seu aguardado pós-doutorado sobre o Romantismo resultou em "oitocentas páginas de argumentação caótica". Todas as pessoas ao redor - amigos, irmãos, colegas de trabalho, a ex-sogra, o médico, o advogado -, todos vinham tratando-no como a um louco, "e por algum tempo ele mesmo duvidara que estivesse são". Será? "Se estou louco, tudo bem", pensa. A única pessoa que parece compreendê-lo é sua jovem namorada argentina Ramona.

Ele precisa de alguma forma dar a volta por cima. Herzog começa a se sentir "confiante, alegre, lúcido e forte" e passa a escrever cartas para "todas as pessoas do mundo". Afinal, "tinha sido tomado pela necessidade de tudo explicar, contar, justificar, pôr em perspectiva, esclarecer, corrigir". As cartas são a forma que o protagonista do sexto romance de Saul Bellow, Herzog, de 1964, encontra para exorcizar os demônios internos que o vêm acometendo depois das tragédias pessoais. Ele nunca envia as cartas - o simples fato de escrevê-las ou imaginá-las o alivia. Entre os destinatários, as duas ex-esposas, o psiquiatra, o monsenhor que converteu Madeleine ao catolicismo; e também gente mais ilustre: Nietzsche. Adlai Stevenson. Heidegger. Deus. Ele mesmo.

Herzog inteiro se passa em poucos dias (fisicamente, ao menos; grande parte se passa na cabeça de Moses): Saul Bellow não precisa de mais do que isso para traçar um dos mais profundos perfis psicológicos de uma personagem que as últimas décadas viram. Herzog é um poço de contradições que, em conflito, confundem-se e deságuam em sua personalidade. É um intelectual brilhante, mas sua erudição não impede que cometa atitudes inacreditavelmente juvenis. É lúcido e consciente do quão patéticas são essas situações, e mesmo assim não consegue conter os impulsos e torna a cometê-las. "Herzog era um pouco débil mental, nada prático, embora intelectualmente ambicioso e de certa forma também arrogante".

Saul Bellow era um romancista à moda antiga. No discurso que fez ao receber o Prêmio Nobel, em 1976, atacou Alain Robbe-Grillet e o pessoal do nouveau roman por decretarem o fim do romance de personagens. Orgulhava-se por centrar seus livros nos indivíduos e, através deles, tentar entender um pouco mais o seu tempo, seu país e a condição humana. Não à toa, Bellow, falecido em 2005, era tido como o mais russo dos autores norte-americanos. Por certo, como nos grandes romances de Dostoiévski, seus protagonistas erram em busca de um sentido para a existência, alternando lucidez e filosofia com tormentos da alma, amor pelo sofrimento e falta de senso de ridículo. O próprio Herzog já foi comparado ao príncipe Míchkin, de O Idiota, e também aos protagonistas de Tchekhov. Bellow, como leitor, rejeitava as novidades passageiras. Recorria sempre aos seus favoritos: franceses e russos do final do século 19, Conrad, Shakespeare, o Antigo Testamento.

O embate entre o arcaico e o moderno norteia Herzog. O romance é um grito de desespero humanista - um pedido de socorro, um aviso do que está por vir, um libelo desencantado em defesa do indivíduo. Com o instinto dos gênios, Saul Bellow anteviu os efeitos que a contracultura e as mudanças sociais dos anos sessenta trariam: "Estavam demolindo e levantando edifícios. A avenida estava repleta de caminhões que faziam concreto, trescalando cheiro de areia molhada e cimento. Embaixo, os bate-estacas batiam e golpeavam (...) na rua, os ônibus exalavam fumaça venenosa de combustível barato e os carros se amontoavam. Era sufocante, triturante, a horrível confusão das máquinas e da multidão desesperadamente resoluta".

Em meio ao concreto, pessoas. As formigas humanas das recém-formadas massas são enquadradas num cotidiano mecânico, cada vez mais apressado e menos reflexivo - o início de um processo cujos efeitos sentimos hoje mais do que nunca. Bellow levaria os contrastes urbanos ainda mais a fundo em O Planeta do Sr. Sammler, na famosa cena em que um negro persegue Arthur Sammler pelos becos de Nova York, encurrala-o e mostra-lhe seu membro. Por trás de tudo, afinal, estão as relações, e elas estão se deteriorando. Há um trecho de Proust que sintetiza o comportamento de Moses Herzog:

"No solitário, a reclusão, mesmo sendo absoluta e durando até o fim da vida, tem muitas vezes por princípio um amor desordenado da multidão que o avassala tanto, acima de qualquer outro sentimento, que, não podendo obter, ao sair, a admiração do porteiro, dos transeuntes, do cocheiro ali parado, prefere nunca ser visto por eles e, por isso, renuncia a toda a atividade que o obrigasse a sair de casa".

Dá para não fazer referência a Proust (outro autor estimado por Bellow), quando a segunda esposa de Herzog se chama Madeleine? Como o biscoitinho de Marcel, a visão da ex-mulher traz ao nosso herói muitas recordações; diferentemente do francês, as recordações não são lá muito positivas. Por ela, Herzog abandonou um bom cargo numa universidade e se mudou para uma casa de campo caindo aos pedaços, nos cafundós da Nova Inglaterra. Lá eles conhecem Valentine Gerbach, que logo se torna o melhor amigo de Moses e depois amante de Madeleine. Ela, aliás, é um show à parte: inteligentíssima e manipuladora, abandona o marido quando sua situação intelectual já não depende mais dele. Em um mundo onde o humanismo está em decadência, compaixão é um valor falido. Bellow, venenoso, usa seu interlocutor para alfinetar as feministas que costumam tachá-lo de misógino: "Nunca entenderei as mulheres. O que elas querem? Comem salada e bebem sangue humano".

Mesmo com toda a vontade de fazer as coisas direito, Herzog não acerta. Seus impulsos sempre o levam a flertar perigosamente com o patético. Ele viaja de trem para visitar uma velha amiga na praia e relaxar do caos de Nova York. Chega na casa dela, sobe para se trocar e percebe que não deveria estar ali. Escreve um bilhete, sai escondido e volta para NY de avião, poucas horas depois de ter saído de lá. Em outra cena, ele vê sua filha depois de uma longa ausência e a leva para passear. No seu bolso está uma arma de seu finado pai, que antes de pegar a criança ele havia tirado da gaveta de sua ex-madrasta moribunda. Herzog, claro, bate o carro, a polícia descobre a arma carregada e sem registro e ele é detido. Madeleine tem mais uma chance de provar seu desequilíbrio mental: outro gol para ela.

Em suas frenéticas cartas mentais, Herzog tenta entender o caos que o cerca. Sim, ele "diz" a Nietzsche, a patuléia vive seus dias finais, aquela "ralé comum, prática, ladra, fedorenta, estúpida, sem luzes"; só que as pessoas cultas serão levadas junto com elas: "a humanidade", avisa ao pensador alemão, "vive, principalmente, de acordo com idéias pervertidas. Pervertidas, suas idéias não são melhores que aquela do Cristianismo, que você condena". A Heidegger, pergunta: "gostaria de saber a que o senhor se refere quando usa a expressão 'a queda no cotidiano'. Quando ocorreu esta queda? Onde estávamos, quando isso aconteceu?".

Com "tenta entender o caos" eu quero dizer "tenta entender a si mesmo". Herzog nunca consegue descobrir se está louco, como afirmam Madeleine e Valentine, ou se é o mundo que está errado. Ao assistir o julgamento de uma mãe que assassinara o próprio filho, só consegue exclamar: "Não posso entender!". Seus sentimentos quanto à humanidade são, como tudo em Moses, paradoxais. Embora às vezes a rejeite ("Será que amo a humanidade? O suficiente para salvá-la se tivesse poder para mandá-la ao inferno?"), no caso do menino assassinado pela mãe, sofre com sinceridade: "não conhecia nada a não ser seus próprios sentimentos humanos, nos quais não achava nada útil. E se chorasse? Ou orasse? (...) e pelo que podia rezar na moderna, pós... pós-cristã América? Justiça? Justiça e mercê? E afastar com preces a monstruosidade da vida, o sonho mau que ela é?". Em seu sentimento de impotência, Moses Herzog é um niilista do niilismo. Não é que Deus esteja morto; Ele só é a morte. E não há humanismo que resista a uma certeza dessas.

Apesar de toda a reflexão, Herzog é, em essência, um romance cômico, daquela comicidade típica dos judeus. Não faz apenas rir; faz gargalhar, nos momentos mais inspirados. É um dos livros que mais se aproximaram daquilo que Brás Cubas queria dizer com algo escrito "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia". O próprio Herzog, no fim do livro, consegue rir de si mesmo e se conformar. "Posso ter a pretensão de muita escolha? Olho para mim mesmo e vejo pernas, coxas, pés, uma cabeça. Esta estranha organização, sei que morrerá (...) O que você quer, Herzog? Só isto - e não ser uma coisa solitária. Estou muito satisfeito em ser, ser somente como desejo, e permanecer na posse disto tanto tempo quanto puder".

Ele agora está pronto para finalmente se entregar à adorável Ramona - seu amor pelo sofrimento será colocado em banho-maria. E já pode abandonar as cartas. "Naquele momento, não tinha mensagens para ninguém. Nada. Nem uma palavra".

Jonas Lopes
Florianópolis, 18/9/2006

 

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