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Sexta-feira, 15/9/2006
13º Porto Alegre em Cena
Guilherme Conte

La omision de la famila Coleman (Foto: Cristine Rochol / PMPA

Duas semanas de uma programação teatral de bom nível técnico e relevância. Um olhar abrangente sobre a atual produção cênica, com ênfase em montagens do Brasil, Argentina e Uruguai. Atores jovens com mostras de muito talento. A chance de ver uma das grandes divas do teatro argentino. Uma peça absolutamente genial e inesquecível. Este é o saldo da 13a edição do festival Porto Alegre em Cena, que começou no dia 5 e termina neste domingo, dia 17.

O sucesso deve-se muito à cuidadosa curadoria do gaúcho Luciano Alabarse, um apaixonado diretor de teatro, o coordenador geral do festival. Com grande trânsito pelos corredores de teatro do cone sul, Alabarse fez uma verdadeira varredura nos palcos do sul do continente e pinçou os espetáculos que mais lhe chamaram a atenção.

"Tentei montar uma programação que trouxesse surpresas, confirmações e revelações", conta. "Não quero um festival feito só para se aplaudir. Quero provocar, discutir, estabelecer um diálogo." O resultado: esta edição foi a que teve mais ingressos vendidos em toda a história do POA em Cena.

E vieram espetáculos bem diversos. A bailarina e coreógrafa Pina Bausch trouxe Para as crianças de ontem, hoje e amanhã. Além disso, algumas das boas montagens brasileiras que passaram por São Paulo nos últimos tempos subiram aos palcos gaúchos. É importante que estes espetáculos circulem, para que se quebre o eixo Rio-SP e que o teatro de fato chegue a diferentes públicos.

Celso Frateschi e Roberto Lage levaram seu Ricardo III, que acabou de ter sua temporada prorrogada por aqui. Antonio Petrin voltou a montar o bom A Última Gravação de Krapp, de Samuel Beckett, com direção de Francisco Medeiros. E a talentosa Georgette Fadel levou dois de seus espetáculos mais queridos pelo público paulistano: Gota d'Água - Breviário, que segue logo mais para o Rio de Janeiro, e Entrevista com Stella do Patrocínio.

Quem causou algum frisson por lá foi o ator Luís Melo, que encenou Daqui a duzentos anos, sobre textos de Anton Tchekov, com direção do curitibano Marcio Abreu. Um delicado trabalho de artesanato cênico em cima de um sólido estudo de dramaturgia. Já havia lotado um galpão do SESC Belenzinho em sua temporada paulistana.

Ainda entre os espetáculos nacionais, a grande expectativa estava por conta da estréia do mais novo projeto da Sutil Companhia de Teatro. Trata-se de Thom Pain - Lady Grey, texto do cultuado dramaturgo norte-americano Will Eno. A direção é de Felipe Hirsch, e no elenco estão Guilherme Weber e Fernanda Farah.

Um trabalho interessante sobre um texto difícil. Na primeira parte, um homem armado de um dicionário tenta estabelecer um diálogo com a platéia. Reflete sobre sua infância e revela uma fala marcada por angústias, decepções, perdas. Revela desejos e intenções frustradas. Na segunda, uma atriz evoca os velhos jogos escolares de mostre-e-conte para tentar mostrar-se ao público.

Thom Pain - Lady Grey (Foto: Cristine Rochol/ PMPA

O texto é contundente e agressivo, incômodo. É interessante notar como ele é fruto de uma dramaturgia que busca avançar sobre a desconstrução do discurso perpetrada pelos autores do século XX. Thom Pain e Lady Grey encontram imensas dificuldades para se fazerem ouvidos, para poderem se mostrar. O encontro com o outro é árduo, um objetivo distante. Mas eles estão tentando; não estão esperando Godot. A violência, aqui, é usada como antídoto da violência. A agressividade da montagem é uma resposta aos difíceis tempos que vivemos.

Embora a montagem ainda padeça da imaturidade própria da estréia, já se antevê um trabalho relevante que se mostra uma importante inflexão no trabalho da Sutil. Um trabalho de câmara, detalhista, no qual menos é mais. Além do que é sempre um privilégio assistir a um ator talentoso, técnico e inteligente como Guilherme Weber.

Uruguai: bons atores

Atores talentosos, ademais, foram a tônica deste festival, sobretudo nas montagens uruguaias. Seja em trabalhos mais intimistas ou despretensiosos, seja em peças ousadas e criativas, o público pôde ver boas atuações.

O espetáculo que serve como exemplo mais patente é, talvez, Cabrerita, um retrato biográfico do mítico pintor uruguaio Raúl Cabrera, texto de Eduardo Cervieri. Por essa tocante e impressionante atuação, o ator Carlos Rodriguez ganhou o Troféu Florêncio de melhor ator em 2005, um dos prêmios mais importantes do teatro uruguaio. Técnica e sensibilidade caminhando juntas.

Interpretações de qualidade também se destacaram em montagens que deixaram a desejar, seja pela encenação um tanto quanto deficitária, seja por textos confusos. É o caso de El camino de los pasos peligrosos e Um numero. Não são espetáculos ruins, mas não estão à altura de outros que foram apresentados no festival. E mesmo ali se vêem interpretações esmeradas.

A grande surpresa dos palcos uruguaios foi o belíssimo espetáculo Morir, uma produção conjunta do Teatro Circular de Montevidéu e da jovem companhia Complot, que também arrebatou dois Florêncios ano passado. Sete mortes cotidianas, aparentemente desconexas, são apresentadas a partir de momentos antes que aconteçam.

Morir (Foto: Cristine Rochol / PMPA

O texto, do espanhol Sergi Belbel (conhecido por aqui pelo espetáculo Carícias), trata o tema com humor e sensibilidade, o que faz com que o espetáculo passe longe de ser banal ou inconsistente. Ao final ele ganha uma dimensão surpreendente, que nos faz pensar sobre como nos relacionamos com as pessoas que estão à nossa volta.

O trabalho de palco é impressionante. Uma direção brilhante, de Gabriel Calderón e Martín Inthamoussú, sobre um elenco jovem, talentoso e vigoroso. Um esmerado trabalho de montagem, no qual uma cena completa a outra e o todo ganha um impacto visual de encher os olhos. Destaque para uma divertida trilha sonora, que vai de Johnny Cash a Frank Sinatra. Delicioso espetáculo, de humor agridoce, que ri e instiga a reflexão ao mesmo tempo.

O novo teatro argentino

Este tipo de humor, inteligente e instigante, é também uma das características da novíssima dramaturgia argentina. Sensação das últimas temporadas em Buenos Aires, a peça La omision de la familia Coleman é um retrato da dissolução das relações de uma família. Sufocados em um ambiente de convivência insustentável, os parentes interagem em um constante jogo de forças, que eclode com a doença da avó.

O amparo e a solidariedade são demolidos pela crueza do dia a dia. Rindo, assistimos ao abismo daquelas vidas. No fundo, todos estão sós. Belo texto de Claudio Tolcachir, que também assina a direção. A exemplo de Morir, aqui também temos um elenco predominantemente jovem e extremamente aguerrido.

Com algum parentesco a essa linha do riso alternado aos momentos emotivos, Los hijos de los hijos, de Inês Saavedra, trata de histórias da imigração européia para a Argentina. Espetáculo irregular, mas com alguns bons momentos, faz uma delicada reflexão sobre as tradições e sua luta contra a marcha inexorável do tempo.

Com uma postura mais engajada, o dramaturgo e ator Eduardo Pavlosky trouxe Variaciones Meyerhold, uma dedicada interpretação sobre a vida e o método de um dos diretores-ícone do teatro russo do século XX, Vsevolod Meyerhold (1874-1940). Inicialmente ligado a Stanislávski, rompeu com ele e trilhou um caminho próprio. Ao resistir ao realismo socialista do regime soviético, acabou fuzilado.

Carismático e naturalmente engraçado, Pavlovsky aos poucos envolve o público em uma discussão sobre o próprio papel da arte e a função do artista. Em outro esmerado trabalho de interpretação - este d'além-mar -, o espanhol Juan Carlos Moretti enfrentou um belíssimo texto do austríaco Thomas Bernhard, Minetti.

A diva

Mas, como era de se esperar, quem roubou o coração da platéia foi a grande diva do teatro argentino, Norma Aleandro. Notória por ter desempenhado um importante papel na resistência às ditaduras argentinas, tornou-se emblemática com o filme A história oficial, de 1985.

Sobre el amor y otros cuentos sobre el amor (Foto: Cristine Rochol / PMPA

Aqui, em Sobre el amor y otros cuentos sobre el amor, Norma tece com maestria uma delicada colcha de retalhos com textos sobre o amor em língua espanhola. Não há traduções. Há nomes como Garcia Márquez, Vargas Llosa e Lorca, além de textos escritos por ela mesma e histórias recolhidas em suas viagens pelo mundo.

"É um espetáculo no qual falo de amor com humor. Tem a leveza dos contadores de história", conta Norma. Muitos amores. Os amores "importantes" e os amores "pequenos", como ela mesma define. O amor homem-mulher, o amor de alguém por um time de futebol, o amor de alguém por seu cachorrinho...

Uma obra despretensiosa que revela uma das grandes atrizes de teatro esbanjando técnica e delicadeza. Por ser simples, o espetáculo fala a todos com aquela cumplicidade íntima de quem se conhece há tempos. A platéia literalmente se rendeu ao charme e ao carisma de Norma.

Uma das expectativas que esbarraram na frustração foi o espetáculo Buchettino, da Companhia Societás Raffaello Sanzio, da Itália. O público deita-se em pequenas camas para fechar os olhos e ouvir a história de "O pequeno polegar", conto de Charles Perrault. Além da narradora, dois integrantes do grupo executam artifícios sonoros para enriquecer a história. Infelizmente acabamos não entrando de fato na história, não somos transportados ao mundo de Buchettino. O espetáculo cai no convencional.

Um Otelo inesquecível

A obra-prima do POA em Cena, no entanto, não veio nem da América do Sul nem de países tradicionais, como a França ou a Itália. Veio da Lituânia, com o grupo Meno Fortas e o diretor Eimuntas Nekrosius. Ele já havia passado em 2001 por Porto Alegre com um Hamlet que marcou a memória de quem assistiu. Agora, com Othelo, não foi diferente.

Em uma leitura original e visionária, Nekrosius equilibra as forças entre Iago, Othelo e Desdêmona. Aqui, os dois não meros títeres de uma trama torpe de um sagaz Iago. Este é reduzido ao seu verdadeiro papel, de um covarde intrigueiro. O grande homem é o general Othelo, um homem maior que os outros, um gigante, mas que comete um erro fatal. É a falha trágica shakespeareana, que o leva a um dolorido assassinato e, no fim, ao seu próprio suicídio.

Othelo (Foto: Ines Arigoni / Divulgação 13º POA em Cena

Em quatro horas de peça, as excelentes interpretações são marcadas pelo comedimento da vida real. Não há excessos, gritos, grandes malabarismos, pressa. A dor é interna, está nos gestos, nos olhares. A tragédia se instaura aos poucos - como, afinal, em nossas vidas. Uma montagem para não se esquecer nunca. Obrigado, POA em Cena.


Guilherme Conte assistiu aos espetáculos a convite do 13º Porto Alegre em Cena.

Guilherme Conte
São Paulo, 15/9/2006

 

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