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Quinta-feira, 21/9/2006
Podcast mental
Adriana Carvalho

Devido a minha preguiça internética, tudo que sei sobre podcasts é que eles são listas de músicas divulgadas na web. O que eu acho muito legal, porque me parece uma ampliação e uma facilitação daquilo que a gente fazia no século passado: gravar uma fita cassete para os amigos com a nossa seleção favorita. Se a fita não estava no começo, precisava rebobinar usando uma caneta Bic ou o dedo mesmo. A edição das músicas às vezes deixava espaços enormes entre uma e outra, às vezes comia um pedaço. E o pior era o final da fita, quando não cabia uma música inteira. Eu cheguei a ter algumas nas quais a canção "continuava" do lado B. A opção para não ter o trabalho de fazer uma fita era emprestar os próprios discos ou, mais recentemente, CDs. Só que aí perigava não ver mais sua coleção de volta. Com os podcasts e com as listas compartilhadas de músicas, esses problemas acabaram. Mas acabou também o caráter artesanal, mais pessoal e exclusivo, ainda que tosco, da troca de músicas.

Eu, pessoalmente, também tenho várias listas que gostaria de dividir com os outros. Só que como disse, tenho preguiça. Então deixo arquivos e arquivos guardados na minha cabeça. Conforme as situações se desenrolam no dia a dia, eles começam a se combinar e a tocar. São como trilhas sonoras. Se alguém encostar o ouvido na minha cabeça, é até capaz de escutar.

Outro dia, ouvindo indignada o caso de uma figura que resolveu dar uma demonstração de poder massacrando uma pessoa muito humilde, uma seleção começou a fluir automaticamente na minha cabeça. A primeira da lista foi "A Banca do Distinto", de Billy Blanco: ("Não fala com pobre/ Não dá mão a preto/ Não carrega embrulho/ Pra que tanta pose, doutor?/ Pra que esse orgulho?/ A bruxa que é cega, esbarra na gente/ A vida estanca/ O enfarte te pega, doutor/ Acaba essa banca./ A vaidade é assim/ Põe um bobo no alto/ Retira a escada/ Fica por perto esperando sentada/ Cedo ou tarde, ele acaba no chão/ Mais alto o coqueiro, maior é o tombo/ Do coco afinal, todo mundo é igual/ Quando o tombo termina/ Com terra por cima e na horizontal").

Depois disso, senti impulsos de crueldade e imaginei uma vingança cantada à la Clementina de Jesus: "Costurou/ Na boca do sapo um bocado de angu/ O resto do prato que o pato deixou/ Depois deu de rir feito Exu Caveira/ (Aqui muda-se o "marido infiel" para a denominação da dita criatura), vai levar rasteira!"

E então fiquei mais filosófica, com Gilberto Gil: ("Tu, pessoa nefasta/ Vê se afasta o teu mal/ Teu astral que se arrasta tão baixo no chão/ Tu, pessoa nefasta/ Tens a aura da besta/ Essa alma bissexta/ Essa cara de cão").

Tem outra música do Gilberto Gil que também toca na minha cabeça, com freqüência, como se fosse uma função fisiológica acionada involuntariamente quando alguém tenta abduzir minha mente. Acontece durante as sessões de tortura que são as reuniões que vão do nada ao lugar nenhum. Ou ainda durante as conversas-monólogo em que a pessoa toma o interlocutor por figurante e não deixa mais ninguém falar.

Primeiro meu olhar fica parado, dando impressão ao(s) predador(es) de que estou prestando muita atenção. Até balanço a cabeça, sorrio de leve e digo expressões de senso comum como "Agora você disse uma verdade!". Mas meu cérebro já está no modo proteção de tela. Se você olhar fundo nos meus olhos é capaz de ver até aquelas janelinhas do Windows flutuando na íris castanha. Torço para a pessoa não me perguntar nada durante a conversa porque eu não saberia o que responder. A única coisa que ouço é ("Vamos fugir/ Deste lugar, baby/ Vamos fugir/ Tô cansado de esperar/ Que você me carregue"). Se eu tiver um bloco de anotação nas mãos estarei desenhando paisagens e pensando em "qualquer outro lugar ao sol, outro lugar ao Sul, céu azul".

Às vezes meu podcast mental dá pau, acho que o de todo mundo dá. É só ouvir uma vez a música mais chata do mundo - um jingle de banco ou de político, por exemplo - e vem a praga. Ela não pára de tocar sem parar o dia inteiro na minha cabeça. Um tio me ensinou um truque para fazer a música sumir: é só pensar nela tocando cada vez mais e mais devagar. Às vezes dá certo, outras vezes (parece de propósito) ela dispara de novo a tocar mais alto e mais rápido.

Outra característica da minha transmissão musical cerebral é que as músicas são divididas em solares e lunares. Para mim Bob Marley é luz da manhã. De preferência com a janela do carro aberta, na estrada, indo para a praia. E é claro que não consigo pensar em "The Sky is crying/ Look at the tears rolling down the streets" num meio dia de fim de primavera.

Neste momento que escrevo já é fim de dia, sexta-feira num meio de feriado. Lá fora a trilha é de muitas sirenes, buzinas e da turba que aproveita a data para fazer compras na 25 de março. Para sublimar esse momento, eu não recorro a nenhum medalhão da música. O que me vem à mente é uma música do Cocoricó que meu filho ouve em casa: "Oh, que tarde tão bela/ Banana quente no forno com açúcar e canela!". Porque para mim, todo fim de tarde devia era ser assim.

Adriana Carvalho
São Paulo, 21/9/2006

 

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