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Quarta-feira, 4/10/2006
Eu quero pagar imposto sorrindo
Ana Elisa Ribeiro

Lembro direitinho da rua onde ficava o TRE. Era lá que tínhamos que ir se quiséssemos "tirar o título". Para minha sorte, era bem perto do colégio. À pé, era só descer a Almirante Alexandrino, andar pela Contorno e virar na Prudente de Morais. Pronto. A meninada combinava de ir em grupo para ser mais divertido. Na volta, andávamos ao lado da Assembléia Legislativa, onde passaríamos a ter influência. Entrei lá várias vezes. Minha carteira de identidade foi tirada no subterrâneo. Depois fui conhecer o plenário, os corredores e os banheiros. Muitos anos depois, voltei para ler poemas, junto com dois poetas queridos, nas comemorações dos 30 anos da Revolução dos Cravos, em Portugal. Entrei como uma noiva (que não fui), grávida, vestida de preto, de braços dados com os dois poetas, e li uns poemas, nem me lembro de quem. Mas foi bonito o episódio.

Dia desses fui a Brasília para uma reunião no Palácio do Planalto. Confesso que foi bacana entrar lá, ser barrada por todos aqueles detectores e seguranças. Estava lá para construir um instrumento de avaliação para um programa nacional de educação, o ProJovem. Aí, sim, tive a impressão de poder participar, embora eu faça isso todos os dias, na sala de aula.

Na época do colégio municipal, escola pública de ótima qualidade, era novidade votar aos 16 anos. Meu pai nunca havia votado na vida e estava perplexo com a tarefa. Minha mãe estava confusa. A questão era: posso votar mesmo ou é pro forma? E eu, meu pai e minha mãe teríamos a mesma experiência, pela primeira vez, juntos. Eles, com alguns anos de atraso, talvez.

Votar, naquela época, aos 16 anos, era voluntário. Ainda é, mas a novidade deixava a escola excitada. Não tínhamos a exata noção do que isso significava, mas queríamos participar. Não sabíamos, ainda, tecer críticas aos candidatos ou aos programas eleitorais. Achávamos chato o atraso da novela ou daqueles caras falando mentiras na tevê, mas era necessário. Boa hora para tomar um banho.

Tirei meu título. Lembro vagamente do dia em que fui buscar. A moça sugeriu que eu o plastificasse. Está lá, na carteira, até hoje, intacto. Desde aquela época, votei várias vezes. Coleciono os comprovantes, que ficam dentro de uma caderneta, cada um com o nome do candidato em que votei escrito atrás. De alguns, me envergonho. De outros, nunca mais tive notícia.

Alguns elegíveis marcaram época com suas campanhas engraçadíssimas. Lembro do Afif Domingos e a linguagem dos surdos-mudos. "Juntos chegaremos lá", quem não lembra dos gestos da mão? Até hoje eu brinco com isso em sala de aula. Grande parte dos meus alunos do noturno se lembra. E nada mais modernoso do que incluir os surdos-mudos na campanha.

Enéas foi talvez o candidato mais comentado de todos os tempos, com aqueles segundos de verborréia aceleradíssima. Quem não brincou com o bordão "meu nome é Enéas"? Pois eu brinco com isso até hoje.

As campanhas mudaram, as pessoas também. Os candidatos ficaram mais expostos. Os eleitores parecem mais desconfiados. Um presidente ladrão, outro presidente acadêmico, um presidente que se gaba de mal saber ler. Estamos bem, hein? E que outra opção há? Minas Gerais insiste em certos nomes que parecem cristalizados. Newton Cardoso soa piada a esta altura. E a caravana passa, com todos os mensalões e mensalinhos.

No meu bolso, nada. Na minha vida, alguma coisa muito difusa. O governo Lula abriu, de fato, muitos concursos públicos, especialmente para repor os contingentes das universidades públicas, único lugar do país em que a ciência e a pesquisa andam a passos largos, muito embora isso se justifique pela eficácia dos pesquisadores.

Você já tentou fazer um concurso público para ser professor universitário? Pois tente. É uma bela experiência. Além da maratona física e intelectual, os acontecimentos são impagáveis. Dependendo da área, os aposentados voltam para suas cadeiras de estimação, concorrem com os pirralhos e, claro, ganham o direito de morrer na universidade. Lado a lado ficam um jovem pesquisador, cheio de gás, e um medalhão e suas caixas de publicações. É claro que isso só serve como experiência de treinante. Outra vez, os professores apenas mudam de estado ou de cidade. Um aposentado do Mato Grosso migra para uma Federal da Bahia e assim vai, numa ciranda. No interior, muitas vezes, a famosa "carta marcada" é que ganha o páreo, sem qualquer preocupação em esconder que o jogo já está ganho. Abraços e beijos nos componentes da banca, apelidos e até o cumprimento entre comadres. Experiência de dar nojo.

Mas isso não é culpa do presidente ou do deputado. Isso é o que está ao nosso redor, cultura impregnada nas coisas. Certo? Mas isso não é política? É, também, mas é de outro tipo, de outro calibre.

A gente passa por muitas moedas diferentes e nem se lembra mais do nome da moeda da adolescência. Passa por nomes, escândalos e confiscos. No tempo da memorável Zélia Cardoso, a grana suada do meu pai foi confiscada. Quando devolveram, o dinheiro de um apartamento deu pra comprar uma geladeira, que está lá em casa até hoje. Muito boa, por sinal.

A campanha das eleições 2006 pelo voto é, de fato, muito interessante. "O Brasil é tão bom quanto o seu voto". É isso mesmo. Algumas pessoas ainda insistem em votar sob critérios os mais estranhos. Porque o cara é "boa praça", é educado, é inteligente ou é ignorante. Não sei se é a característica pessoal do cara o que realmente interessa. Fico pensando com meus botões: o que esse cara vai fazer? Aumentar o preço da gasolina? Trocar o nome da moeda? Confiscar minha poupança? Privatizar a universidade pública? Implodir o que sobra das escolas públicas de ensino básico?

O SUS, por exemplo, é uma boa sacada. Embora a mídia faça uma força para dizer que ele não funciona, é interessante procurar saber dos atendimentos, das cirurgias de ponta e dos tratamentos feitos em hospitais públicos brasileiros.

As coisas poderiam funcionar muito bem neste país. Há vida inteligente por aqui. Há também quem tenha alguma noção de que, mesmo falando mal de tudo, é ou deveria ser peça ativa deste quebra-cabeça.

O que me preocupa, de modo geral? Que eu pago um imposto indecente e ainda tenho que pagar tudo em dobro. Pagar em dobro? Sim, porque os impostos que eu pago, e não apenas o Imposto de Renda, deveriam me deixar tranqüila para algumas coisas básicas: 1. Ter a certeza de um bom tratamento gratuito de saúde, quando eu precisar; 2. ter meu filho numa boa escola pública; 3. ter segurança para ir e vir, direito que me é assegurado pela Carta Magna. O que vejo não é isso. Minha planilha de Excel aponta que pago, além dos impostos, plano privado de saúde, seguro de carro contra roubo e furto, escolas particulares que juram que farão do meu garoto um cara melhor.

Eu só vou acreditar que a vida dos brasileiros é boa quando alguém der a nós o que nos é de direito e o que nós pagamos anualmente para ter. Pagamos diariamente para desfrutar. Só assim.

É por isso que eu voto. Algumas vezes anulei. Outras vezes, meti lá um número e apertei o botão verde. Este ano, vou levar meu filho para, aos 2 anos, votar comigo. Ele gosta mesmo é da musiquinha que a urna toca quando o voto é confirmado, mas vai aprender rápido quanta esperança tenho depositado no futuro dele quando pressiono aquela tecla. Dependendo da nossa atitude, quem sabe ele ainda vá pagar os impostos com boa vontade?

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 4/10/2006

 

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