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Quarta-feira, 13/12/2006
Os livros que eu dei
Ana Elisa Ribeiro

Dar livros é uma encrenca, mas isso depende muito de quem vai ser presenteado. Grande parte das pessoas não gasta dinheiro comprando livros. Passa anos na faculdade e não faz, sequer, uma biblioteca básica. A questão não é só relativa ao direito autoral ou à cultura, mas ao estabelecimento de prioridades. As pessoas, em geral, não querem pagar 50 reais por um livro que ficará guardado na estante. Não querem nem mesmo gastar dinheiro com estantes que só caibam livros. Compram estantes que cabem televisores de 29" ou aparelhos engenhosos de som, mas os livros ficam pelos cantos, se não forem para o lixo. A coisa mais chocante é ver livros queimados num lote vago. Ver coleções de enciclopédia jogadas no mato. É coisa de estarrecer. Que fossem para uma biblioteca, lugar, aliás, apropriado. Os clássicos e os novatos espalhados entre as cinzas. Coisa da Inquisição.

Como as pessoas não compram livros, é relativamente fácil dar livros de presente para elas. Pode ser que não gostem ou que prefiram ganhar um bibelô, um saca-rolhas, um sapato. Certamente serão mais úteis, mas não serão tão intencionais quanto uma boa obra de Sade ou um mistério de Poe.

Ganhar um livro como O grande deflorador, do Dalton Trevisan, quer dizer tanta coisa... Capitu sou eu, muitas outras. Livros dizem o que está neles escrito e mais alguma coisa. Foi pensando assim que dei alguns livros. Presenteei para provocar, para assolar, para não me deixar esquecer. Não sei se ainda existem nas estantes, nas gavetas, ou se foram para alguma fogueira em loteamento baldio.

Meu pai é um freqüente ganhador de livros, minha vítima imperfeita, já que não tem esse hábito. Tem em casa uns tantos livros de medicina, antigos. Tem, no entanto, o velho hábito de ler quando vai ao banheiro. Fumar e ler. E então entro eu, com minha gana de fazê-lo ler mais do que a Veja.

Muito embora ele leia revistas e jornais com afinco, não lê livros inteiros com a mesma concentração. Digamos a verdade: não é confortável ler livros sentado no vaso. Ou é? Questão de hábito. O vaso tem que ser confortável. E já que o leitor em questão não é nenhum Dom Quixote, dou sempre os livros que me parecem mais adaptados: os das listas de mais vendidos. Vez ou outra minha antena capta um comentário, uma curiosidade sobre uma obra ou outra. Para quem ainda duvida que os jornais ajudem a vender livros, afirmo: eu compro livros para meus pais porque eles ficam curiosos com as matérias dos jornais. Foi assim que dei, ultimamente, Freakonomics e Não somos racistas. Ambos para o meu pai, que os levou para o banheiro. O primeiro não vingou. Logo foi parar na mesa de cabeceira do meu irmão. Em todo caso, cumpriu parte do seu papel: alcançou mais leitores do que o previsto. Já o Não somos racistas foi devorado em poucos dias e muitas idas ao banheiro.

Certa vez dei a meu pai um livro sobre a história da música. Tecladista, músico frustrado, ele não conseguiu ler. Era um livro acadêmico, numa linguagem inatravessável. Pedi desculpas. Minha mãe fica atrás na lista das vítimas de livros. A última aquisição deve ter sido Mulheres que correm com os lobos, também de lista dos mais vendidos e também uma compra impulsionada pela leitura dos jornais. Ela leu. Não comentou.

Meu amigo Ricardo Rabelo ganhou um livro do Glauco Mattoso, sonetista contemporâneo das pornografias. Achei que o livro convinha ao dono. Acho que acertei. Rabelo estava numa fase de conhecer as delícias literárias dos anos 2000. Acho que se afeiçoou ao autor.

Cristiane, minha amiga, também foi o alvo de alguns presentes. Como minha amiga é designer, é de se esperar que gaste mais tempo olhando para o livro do que lendo-o. Tece críticas à capa e ao acabamento, mas deixa passar as vírgulas. Cris ganhou a história dos quadrinhos mineiros. Foi um bom presente. Daqueles que a gente fica na dúvida se vai ter coragem de dar. Fui à loja e comprei outro para mim.

Livro é assim: às vezes a gente dá o que tinha vontade de ganhar. Outras vezes a gente cobiça. Lembro de cobiçar o Pequeno príncipe do meu pai, prêmio por ser o melhor aluno do colégio, edição da década de 1950. Hoje o livro é meu. Surrupiado sob a desculpa de ficar melhor acondicionado nas minhas estantes.

Também assim fiquei com os Cem anos de solidão, porque Fred esqueceu no carro do Ed, que esqueceu de buscar. Está na minha estante e torço para que tenham se esquecido dele. E também o Manual do Revisor que dr. Hugo deixou lá em casa. Este eu uso para trabalhar. Bendito dr. Hugo.

Para ir além
Leia também "Os livros que eu ganhei".

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 13/12/2006

 

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