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Terça-feira, 11/9/2001
Aquela sensação de estranho
Rafael Lima


"Em 1990, Daniel Clowes venceu o Homem-Morcego. Sem poderes especiais, nem tampouco armas miraculosas (sequer um cinto de utilidades), Clowes derrubou o Batman, para susrpresa dos americanos, por duas vezes. Naquele ano, o Harvey Award - premiação que reflete os votos de críticos e profissionais - de "Melhor História" foi para Like a Velvet Glove cast in Iron, e não para a barbada Arkham Asylum. Clowes 1x0 Batman. Essa mesma votação consagrou Eightball como a "Melhor Série Nova", desbancando, desta feita, outra bat-barbada, Legends of the Dark Knight. Clowes 2x0 Batman."
Foi por essas exatas palavras que ouvi falar pela primeira vez em Daniel Clowes. O suficiente para causar um curto-circuito na minha curiosidade, só reparado quando vim a ler a edição original da Fantagraphics de Velvet Glove, anos depois. E agora a editora Conrad - leia-se Rogério de Campos e André Forastieri - que já vinha com bons lançamentos, anuncia que vai lançar a versão nacional de Like a Velvet Glove Cast in Iron. Provavelmente o melhor lançamento de quadrinhos estrangeiros no Brasil do ano.

Daniel Clowes faz parte da geração que começou a aparecer em meados da década de 80, e reformou a cara do melhor quadrinho norte-americano. Aquele que esteve nas tiras de jornais no começo do século XX, que esteve entre os super-heróis na 2ª Guerra e que começou a perder o rumo depois da década de 60. Não por acaso, quando a contra-cultura começa a aparecer também nos quadrinhos. Clowes leu ainda adolescente R. Crumb, Gilbert Shelton, Spain Rodrigues, enfim, toda a gang que fez com quadrinhos o que os Beatles fizeram com a música. Sabe-se lá qual o estrago que a leitura de Crumb na adolescência pode causar, é o tipo de coisa que as mães jogam fora em pleno horror quando descobrem que era aquilo que os filhos estavam lendo.

Com influências assim, era de se esperar que Clowes se transformasse num daqueles infelizes presos no tempo, que passam o resto da vida a tentar transpôr as lições do não conformismo para os mais novos, tal como Angeli e Laerte, brilhantes no que criaram, mas que se renderam a fórmulas. Mas não. Se Clowes aprendeu uma lição, esta foi a de Harvey Kurtzman, o precursor do humor underground e inventor da MAD: "Todo mundo está mentindo", inclusive eu. Seu ceticismo se aproxima mais do cotidiano enlouquecido do cidadão kurtzmaníaco dos anos 50 e dos personagens neuróticos de Jules Feiffer, do que o cada-um-na-sua hippie. Humorista que não poupa nem a própria patota - e nem a si mesmo -, afinal, as boas piadas ainda são mais raras do que os amigos.

Ler uma história de Clowes é como tomar uma aula de pessimismo. Às vezes eu fico com a impressão de que ele é uma pessoa do tipo que renomeia os arquivos que vai apagar com o nome de seus inimigos só para poder ter a satisfação de clicar no botão do "sim" quando o computador perguntar "tem certeza que quer mandar Fulano de Tal para a lixeira?". Num dos primeiros números da Eightball, Clowes fez uma história chamada "I hate you deeply", em que se resume a listar todos os tipos que fazem seu lítio baixar. Depois, numa tentativa de se redimir, tentou "I love you tenderly". Conseguiu achar assunto para falar bem por uma página e meia, depois pediu licença, disse que tinha esquecido alguma coisa na história anterior - e soltou mais veneno. Com tanto nihilismo, não é de se admirar que ele se veja cercado por todos os lados, a ponto de fazer algumas histórias ligadas (de maneira humorística, sempre) a profecias apocalípticas, às diversas formas de fim do mundo, da poluição desenfreada ao ataque alienígena. Há que se perguntar: em que ele acredita? Como ele vê o mundo?

A resposta é um emaranhado de lendas urbanas, mega empresas do mundo corporativo, o deserto de almas da sociedade americana, subcultura pop, tramas policiais, profecias malucas, crimes violentos, teoria da conspiração, tudo bem arranjado de modo a impregnar o leitor com aquela sensação de estranho. Quando Clowes consegue fechar uma trégua com seus objetos de ódio e se foca nesse emaranhado é que atinge os melhores momentos, como em Like a Velvet Glove Cast in Iron (título provisório, Como uma Luva de Veludo Moldada em Ferro). As surpresas escondidas lembram as melhores roteiros de Além da Imaginação, aqueles em que no final a mulher descobria que todos os vizinhos eram mortos-vivos. O desenrolar narrativo parece o de um policial noir, a cada hora incluindo um novo personagem cuja participação é absolutamente imprevisível. As caracterizações tem o olho selvagem dos caricaturistas (definitivamente, Clowes não é do tipo que se apaixona pelos seus personagens). E o estilo de desenho soma a meticulosidade das hachuras cuidadosas com a simplicidade estilizada de quem quase não faz fundos. Estetica e tematicamente Daniel Clowes é um criador pleno; já se livrou da "angústia da influência", o que o converte uma fonte de primeira para estilistas, e diretores de videoclip daquela tevê que é uma M. copiarem, diluirem e espalharem aos quatro ventos como a última bossa. Lembra daquele último filme que te assustou, Felicidade, uma série de histórias bizarras entre pessoas disfuncionais? Adivinha quem desenhou o cartaz...

Mas Clowes teve integridade suficiente para não fazer videogames com seus personagens. Velvet Glove mistura roteiristas de snuff movies, colecionadores de lixo pop, cachorros alterados geneticamente para ficarem sem orifícios, mapas indecifráveis, gurus que lêem o destino em banheiros de cinemas poeira, alienígenas e os desastrados sinais de suas passagens pela Terra, seitas de ocultismo e muita gente esquisita. Clowes se vale brilhantemente daquilo Scott McCloud chamou de closure, conclusão, o envolvimento do leitor na narrativa ao requerer que ele complete a lacuna do que acontece entre 2 quadros subsequentes. Há sequências e sequências de imagens aparentemente desconexas, cuja coerência só vai aparecer com o andar da história, mas que nem sempre ficam completamente esclarecidas - e é aqui que o pulo do gato, porque os significados se multiplicam e se confundem, deixando o leitor com aquela sensação de estranho. E contaminado pela paranóia de Clowes. Não é só um desconforto, é o chegar ao fim, e querer reler para ver se deixou passar alguma coisa, e procurar significados ocultos, e reler, e reler, e reler...

Em tempo: Clowes escreveu o roteiro e Terry Zwigoff dirigiu Ghost World, adaptação para o cinema de sua outra obra-prima. Ghost World trata daquele difícil período da saída da adolescência na vida de duas amigas, Rebbeca e Enid. Acho que a melhor pista de que o filme deve é bom foi saber que por conta de uma peça que pregam, as duas amigas acabam se envolvendo com um loser, um tipinho comum, interpretado por...Steve Buscemi.


A imaginação e o Poder
Luís Carlos Maciel escreveu outro livro sobre a contra-cultura, mais um, acho que o quarto de sua vida. É impressionante como esse povo que chegu à "idade da razão" na década de 60 perece ter dificuldade de se livrar dela. O que teriam Kerouac, Morrison, Hendrix, Warhol e tantos outros que não tiveram escritores, boêmios e artistas de outras gerações, em maior número e melhores? Só quem viveu sabe, se bem que, como lembrou Art Spiegelman, qualquer um se lembra dos anos 60 é porque não os viveu. Repetitivo que seja, Maciel merece ser lido. Primeiro, porque foi um dos pouquíssimos que leu os pensadores mais citados da contra-cultura (McLuhan, Sartre, Leary, Marcuse, Allan Watts, Norman O. Brown, Willhelm Reich, Norman Mailer), muitos no original em inglês, ao contrário das "leitoras de orelhas de Marcuse" que Nélson Rodrigues tanto ironizava. Segundo, porque entendeu e se permitiu um olhar crítico, apesar de ter aceitado a maioria do que cada um propunha, mastigando para os leitores em seus artigos da época no Pasquim, o que lhe valeu o apelido que ele rejeita até hoje de guru da contra-cultura. Terceiro, porque quem faz uma coletânea de textos chamada Nova Consciência só sobre temas da contra-cultura e inclui um artigo sobre Paulo Francis lá no meio merece todo nosso crédito.
As quatro estações, Luis Carlos Maciel, Record, 2001

Grace é um barato
É impossível, depois do dramalhaço Mentiras e Segredos, ver Brenda Blethyn ocupar a tela sem se preparar para uma tempestade de lágrimas, e o início de O Barato de Grace (Saving Grace) promete. Como é que aquela jardineira de meia idade faria para se safar das imensas dívidas que seu marido havia contraído quando em vida, ameaçando inclusive a hipoteca da Liac House? Plantando haxixe em sua estufa é a solução e o mote criativo de um roteiro que não se resume a isso, com hilariantes reações do povoado à novidade, uma daquelas pequenas cidadelas inglesas à beira mar com um castelo e uma igreja medievais para onde dá vontade de se mudar para só passar a vida trabalhando com pesca ou jardinagem, ou talvez sendo o único médico, padre ou guarda da cidade, bebendo sempre no mesmo pub onde o barman está mais preocupado em filosofar do que atender os clientes e me fingir de inglês legítimo imitando a rabugice, a elegância e o nariz empinado deles. Não fosse suficiente para embalar, ainda tem impagáveis achados tipicamente britânicos. É a comédia mais engraçada em muito tempo.

Prazer em conhecer
A C&A cobriu a cidade com out-doors da sua nova coleção primavera-verão. Querem que eu bata. Só pode ser isso.

Lolitas à granel
Com Anita nas Tevês e a garota Sukita nas bancas, parece que finalmente o lolitismo, pelo menos nessa versão light (afinal, são todas maiores de idade) está liberado para o grande público. Boa. Agora só falta eu passar dos 40...


Rafael Lima
Rio de Janeiro, 11/9/2001

 

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