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Quinta-feira, 19/10/2006
Meditação sobre São Francisco
Adriana Carvalho

Um quintal do tamanho de um campo de futebol, uns morros com riacho. Cavalos, cachorros, passarinhos e os muriquis passeando no alto das árvores. Comida sem agrotóxico nas refeições. Boa escola para os filhos, com mensalidade de acordo com o bolso dos pais. Nenhuma notícia de violência nos últimos anos.

Fred, o dono da Pousada São Francisco, em São Francisco Xavier, conta que já recebeu visitas de empresários interessados em comprar tudo isso dele em troca de uma muito generosa soma de dinheiro. Enquanto retira cuidadosamente algumas folhas da piscina, sob o olhar ansioso de meu filho, Francisco, doido para pular na água, Fred conta porque recusou. "Este lugar sustenta a mim, minha esposa, meus três filhos, meu irmão, meus sobrinhos, meus pais. E toda essa tranqüilidade não tem preço". A vida que ele leva em São Francisco Xavier, tão diferente da vida dos paulistas que estão a apenas 2h30 de distância de carro, nem o dinheiro, nem o Mastercard podem pagar. A limpeza da piscina termina e Francisco corre para a água. Nós enchemos o pulmão com a tranqüilidade da manhã de fim de setembro e aproveitamos o dia enquanto esperamos o show da noite no Photozofia, de Sandro e Patrícia Ioco, que nos convidaram para o 3º Festival de Cordas da Mantiqueira.


O aconchegante Photozofia

Como sempre fazemos em toda cidade pequena e deliciosa que conhecemos, pedimos mais informações e começamos a sonhar em deixar São Paulo. Um dia sei que conseguiremos, precisamos é encontrar o lugar certo e algo o que fazer. Desanimamos um pouco ao saber que a especulação imobiliária já está presente em São Francisco Xavier, distrito de São José dos Campos com pouco mais de 3 mil habitantes. Segundo Fred, um pedaço de terra montanhosa e sem nenhuma benfeitoria custa cerca de R$ 100 mil. Não há casas para vender no centro e quando aparece algo, os preços são parecidos com os de São Paulo: R$ 180 mil, R$ 200 mil. Algumas personalidades já têm propriedades ali. Quem conseguiu seu espaço na terra que tem como símbolo os macacos muriquis, também chamados de mono-carvoeiros, conseguiu. Quem quiser ir agora, tem que pagar caro.

Havíamos chegado em São Francisco Xavier na madrugada de sábado. Teríamos feito uma viagem mais rápida se não perdêssemos a entrada do km 151 da Dutra, que dá acesso mais fácil ao centro de São José dos Campos. Estávamos distraídos conversando, acredite se quiser, sobre técnicas para pegar saci-pererê (para quem não sabe, tem que jogar aquelas peneironas que se usam na roça em cima do redemoinho do saci. Depois, atenção a esse detalhe fundamental, é preciso tirar a carapuça dele). O assunto surgiu pela proximidade com a cidade de Monteiro Lobato e nossas lembranças do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Enfim, acho que tinha algum saci ouvindo a nossa conversa, porque depois que erramos a tal da entrada 151 rodamos quase uma hora como peru de natal, tontos à procura do caminho para São Francisco Xavier. Em cada posto que a gente parava para pedir informação, o que diziam era: "Você tem que fazer o retorno aqui e..." e de tanto fazer retorno a gente ficou dando voltas em círculo. Chegamos a parar no portão de entrada da Embraer. Obra do saci, com certeza.

Acordar na pousada, o som do riacho que passa quase sob a janela dos chalés, tomar café da manhã calmamente nas cadeiras preguiçosas da varanda. Eu realmente estava precisando disso. Iogurte, granola, morango, mel, broa de milho, queijo artesanal, suco de laranja, café com leite. Eu amo café da manhã de pousada! O duro foi convencer o Francisco a terminar de comer sua torrada diante da visão do balanço e do escorregador no gramado logo em frente. Depois, passear pelas ruas do centro. Ao lado da pousada, está a Ilha São Francisco Xavier, um espaço com algumas lojas de artesanato, lanches e até lan house. Todo sábado tem uma pequena feira de vegetais orgânicos. Ao lado, uma artesã que costumava expor na Praça da República, em São Paulo, ri quando pedimos seu telefone ou e-mail. "Ih, eu fugi de tudo isso, fugi de São Paulo. Nem telefone tenho". Ela tinha um dream catcher lindo em exposição, um apanhador de sonhos como o dos índios da América do Norte. Na "Ilha" tem também um ofurô no meio da grama e serviço de massagem.


Conrado Paulino

À tarde, depois de um almoço de pescada ao molho de shitake na Cantina Belluno, fomos conhecer o Photozofia, a Patrícia e o Sandro. Na entrada, uma trepadeira de flores lilás adorna o letreiro. Parte do chão e algumas vigas que sustentam a construção vieram de material de demolição do antigo Gasômetro, na região do Brás, em São Paulo. Ficaram lindas ali. O teto é feito de caixas de leite recicladas. A decoração tem relógios de pêndulo, máquinas fotográficas, e no palco, pedaços de viola de cocho. Vendem-se roupas em estilo indiano, CDs e livros - uma coleção de títulos da antroposofia de Rudolf Steiner. Bastante simpático o cartaz na entrada que diz: "Suas crianças são bem-vindas". Francisco parece que sente a acolhida e percorre à vontade o espaço. Detém-se no expositor de tortas e escolhe uma de brigadeiro, enquanto nós tomamos um café orgânico muito bem tirado. Sandro e Patrícia se conheceram quando trabalhavam na TV Cultura, como produtores. Sandro também é fotógrafo. Depois de visitar algumas vezes São Francisco Xavier, decidiram se mudar para lá com os dois filhos pequenos e criar o Photozofia. Além da boa cozinha e do cybercafé, o espaço abriga exposições de arte e fotografia e organiza há três anos, em setembro, o Festival de Cordas da Mantiqueira.

"Para vir para cá, a gente tem que pensar em outros termos. Não podemos querer ganhar a mesma coisa que ganhávamos na capital", conta Patrícia. Da mesma forma, o Photozofia também não pretende ser um restaurante-bar paulistano encravado na serra. "Quisemos montar um lugar com a cara desta cidade. No primeiro dia, as pessoas chegam ainda no ritmo de São Paulo, ficam ansiosas por ser atendidas rapidamente. Depois do segundo, do terceiro dia, já vão relaxando e nem notam o tempo passar", fala Patrícia.

O serviço no Photozofia é educado, correto. Os atendentes não correm, não se atropelam, em linha com o movimento calmo de toda São Francisco Xavier. Mas nem todo mundo sobe a serra com esse espírito. "Tem gente que vem para cá e quer ser feliz em três dias tudo que não foi feliz no ano", resume muito bem o Sandro. Querem fazer, ver tudo, correndo, sempre correndo. Na pacata XV de Novembro vimos um carro tentando ultrapassar outro em pleno sábado à tarde. Para chegar onde? Chegar mais rápido para quê?

Nós, devo confessar, não vimos muito de São Francisco Xavier. E ao mesmo tempo vimos bastante. Ah, como estou filosófica - ou "photozófica" agora... O tempo não ajudou a ver as cachoeiras, a levar o Francisco para andar de pedalinho no Pouso do Rochedo, a visitar o trutário. Ao mesmo tempo, demos tempo ao tempo para nos permitir dormir profundo no aconchegante chalé da pousada. Para brincar demorado na piscina durante uns momentos de sol. Para comer com tranqüilidade. Pretendemos voltar muitas vezes a São Francisco Xavier e, a cada vez, desfrutar um pedaço novo da sua paz.


Ricardo Giuffrida

E o Encontro na Mantiqueira? Antes de voltar para o Photozofia, à noite, bateu uma certa apreensão: será que conseguiríamos manter nosso pequeno quieto para ouvir um show de cordas? É lógico que não seria culpa dele sentir-se entediado em um programa para adultos. Antes dos músicos subirem ao palco, momentos de tensão. Acomodados no mezanino, pegamos o Francisco no pulo, olhando com más intenções ora o prato de macarrão que estava comendo, ora o público lá embaixo. Juro que não ensinamos isso pra ele e nem ele viu em lugar nenhum. Acho que está na programação básica de molecagens que nasce com todo menino. Como molhar papel higiênico e jogar na parede do banheiro (sim, ele também já fez isso. E só tem três anos!). Saí correndo com ele para não perder o início do show, entrei no primeiro estabelecimento que encontrei aberto e comprei a única coisa que encontrei para entretê-lo: um jogo de baralho. E assim ele passou o tempo separando as pretas das vermelhas até começar o show. Quando o violonista Ricardo Giuffrida entrou no palco para iniciar o show de encerramento do Encontro, Francisco sossegou. Desde pequeno ele sempre foi muito interessado em música, sempre curtiu ouvir o papai tocar seu contrabaixo. Sentou-se então no sofá e ouviu quietinho as canções na guitarra flamenca, chorinhos e MPB no violão. Aplaudiu entusiasmado o final de cada música e pediu silêncio quando ouvia alguém conversar. Se fosse um pouco maior, certamente teria se encantando também com o percussionista que acompanhava o músico em instrumentos não convencionais, como um pote de cerâmica e uma lista telefônica. Só no final do show do Conrado Paulino, que arrasou com arranjos complexos em seu violão e foi acompanhado em uma das músicas pela bela voz de sua esposa, é que o sono venceu e o pequeno arteiro dormiu até a hora de voltarmos para a pousada. Então nós também relaxamos e finda a sessão de fotos que o Fábio tirou do show, pudemos curtir com tranqüilidade o nosso jantar.

Eu aproveitei um certo friozinho que fazia para pedir uma sopa de cenoura com laranja e gengibre, e o Fábio, uma boa posta de salmão com molho de maracujá e uma salada orgânica. Uma salada com gosto de São Francisco Xavier: tudo o que tinha de simples (rúcula, cenoura, tomate cereja), tinha também de saborosa (quem nunca comeu uma salada orgânica, nunca comeu uma salada de verdade, pode ter certeza).

Adriana Carvalho
São Paulo, 19/10/2006

 

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