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Terça-feira, 30/10/2001
A fila sempre anda
Rafael Lima

Domingo mereceu música dos Titãs em homenagem, mas é a sexta-feira que todo mundo espera chegar - tanto que não precisa ter uma música só para ela. Quando recebi o convite por e-mail - ou melhor, o release, porque jornalista não faz convite, faz release de festa - nem pensei duas vezes, apesar de uma resistente dor de garganta. A programação prometia (não sei se para bem ou mal, mas prometia): às 21h00, show de Baia e os Rock Boys, depois discotecagem do DJ Dodô, fechando com show de forró. Pode até enganar trouxa, mas eu já aprendi a ler essas coisas nas entrelinhas. Friômetro, como chamo: o meu detector de roubada.

Por exemplo, nunca tinha ido a um show de Baia e os Rock Boys, mas não é preciso ser muito esperto para sacar o tipo de música que uma banda com esse nome toca. André Forastieri disse uma vez que quem ouve o disco inteiro para fazer crítica é amador; profissional ouve a primeira faixa e olhe lá; às vezes escreve só em cima do que está na capa. Eu, que não sou profissional, aprendi a aplicar essa técnica a cartazes e trailers de filmes e já sabia o que me esperava: era torcer para ser curto. Dodô é um ótimo DJ com o péssimo hábito de entrar na empolgação do público e tocar o que deixa a pista cheia, o que acaba terminando invariavelmente em Lulu Santos. Quanto ao forró, basta dizer que o Trio Forrozão, o mais famoso conjunto do ritmo arretado por aqui, era composto por 4 pessoas. No convite não dizia nem o nome do grupo. Agora, o mais engraçado era o seguinte: no release dizia que não tinha flyer - esse substituto cibernético do convite - nem nome na porta - a versão pós-moderna da carteirada - era só chegar lá e dizer que se estava indo para o aniversário do Mochilinha. Pensei em quantas cervejas eu ia ter que beber para dizer: "Escuta, eu vim aí para o aniversário do mochilinha..." como se fosse a coisa mais normal do mundo, e ser recebido com igual ar blasé sem ficar nem um pouco espantado com o ridículo da situação, lá dentro. É que o troço todo era uma festa temática - como tudo hoje em dia o é (e o que não é temático é conceitual) - de lançamento do site do estúdio de webdesign do tal Mochilinha e seu sócio, cujos nomes reais descobri visitando a, digamos assim, versão demo do site. Ô língua ruim essa que a gente fala. Tempos estranhos esses em que website tem versão demo e qualquer um pode ter identidade secreta, e não só super-herói. Pronto, já podia dizer que conhecia o respeitável senhor Júnior Simões, o que pode não ser muito original, mas melhor do que Mochilinha é. O nome do site era Tangerina alguma coisa. Na entrada do site apareciam os dois sócios cada um segurando um... caju.

Aprendi o melhor trajeto para se chegar de carro até lá, um antigo casarão em Botafogo, com um amigo que não dirige, e engasguei um pouco na porta ao dizer que tinha vindo para o aniversário do Júlio, quer dizer, do Júnior, o que não acabou não rendendo maiores problemas. Lógico que atrasar em uma hora e meia foi pouco, porque nem o tal Baia havia saído da respectiva para passar o som, nem a minha amiga tinha chegado. Pedi uma cerveja para esperar. Como tudo parecia demorar, e o local estava vazio, mais uma. Alguns casais denunciavam o gosto pelo forró nas saias hippies e sapatilhas nas mulheres e alpargatas para homens, mas também tinha a turma do cabelo laranja e piercing, e bastante mulher. Aos poucos, fui me animando com a sequencia emendada pelo DJ, que sem necessidade de colocar o povo para sacudir o esqueleto mandava um sequência de clássicas que comportava até Cole Porter. Quando tocou Walk on the Wild Side decidi que era hora de cumprimentá-lo pessoalmente.

Nisso, finalmente chega a minha amiga, que também conhece o DJ, e ele prontamente se dispõe a tocar meu pedido: Ms. Robinson. Estava ficando bom quando a música foi cortada no meio para a entrada no palco do tal Baia - os rock boys devem ter seus friômetros melhor calibrados do que ele e ficaram em casa - se auto-acompanhando com violão e gaita. Tocava um rock nordestino na linha Raul Seixas ou Zé Ramalho pré-misticismo, que te deixa pensando se o cara é assim mesmo ou se está forçando o sotaque para fazer tipo. Parece que a segunda alternativa é a correta, porque em 3 músicas já estou irritado. O sentimento não parece ser só meu, apesar das 4 pessoas na boca do palco que estão gostando, dançando e até cantando acompanhado algumas músicas. Acho que essas 4 pessoas são contratadas para fazerem coro em todos os shows ruins da cidade. É para essas 4 que o tal Baia continua tocando nos próximos infindáveis 50 minutos (psicológicos, se não cronológicos), apesar dos resmungos e ameaça de levar uma lata na testa. Aliás, o sentimento contra é tão generalizado que falar mal dele torna-se uma ótima maneira de puxar um papo com qualquer um.

Resolvi recuar e ficar no fundo batendo papo com o DJ, a minha amiga e amigas dela. Uma delas expõe uma teoria antropológica muito interessante fazendo uso de uma imagem doméstica para se referir à infidelidade masculina: a fila anda. A fila sempre anda. Pode demorar um pouco mais, pode empacar, às vezes você tem que trocar de fila como em caixa de supermercado, mas a fila sempre anda. Discutiu-se ainda como os ascendentes em umbanda determinam as características da personalidade, assim como na astrologia funciona com planetas. E o Baia arretado lá, nada de sair do palco. As cervejas já faziam seu efeito.

Finalmente o Baia se mancou, agradeceu e saiu do palco, e o Dodô pôde atacar, mas não com fúria, porque alguém da casa impedia som alto, área residencial etc. Voltamos para a rodinha, o que se há de fazer. Muita gente circulando por ali, mas a minha impressão é de que na pista só a gente, naquele arremedo de sacolejo arrítmico que um povo aí chama de dançar. Dirigir para mim é mais fácil do que dançar porque aquilo eu consigo fazer depois de umas e outras, e isso, não. Nada mais de 4 músicas depois os donos do estúdio Tangerina (e da festa) subiram no palco e abriram uma tela de projeção, parece que para apresentar o alguma coisa. Alguém tinha me falado que ia rolar um "institucional do site", mas eu me neguei levar a sério até ver os dois ali em cima. O que leva alguém a trabalhar 10 horas por dia com internet e na festa de sexta de noite ainda ficar falando de Java e HTML? O fato é que eles estavam maravilhados, Pigmaleões em transe com suas Galatéas. Rodaram a apresentação em flash vááááárias vezes, animada com musiquinha de fundo. Lá pelas tantas chamaram um cara com um violão para cantar o que seria uma espécie de hino, ou jingle do site, que era assim: "Não tem mamão, não tem melancia, não tem laranja, não tem tangerina, não tem melão, eu só quero é tangeriiiiiiiina....", e outras estrofes nessa linha. A coisa estava tão feia que as meninas por perto já suplicavam por um forró, pelamordedeus o forró. Comecei a sentir dor de cabeça e fui tomar um guaraná.

Depois de muita insistência, finalmente alguém tomou-lhes o martelo com que, qual Michelangelos ensandecidos, golpeavam o joelho daquele Moisés, que, se pudesse, provavelmente não só já teria falado, como teria gritado e esperneado, contanto que parassem de bater. Mas não deu tempo do DJ invadir, porque banda de forró invadiu o palco antes. Aliás, a essas alturas o Dodô já tinha se refastelado e estava achando a pilastra de madeira muito confortável no papel de travesseiro. A menina da teoria da fila jogou a toalha e foi embora. Meio entre o perdido e o exasperado, fiquei ali por perto das outras meninas esperando o forró começar, naquele clima da expectativa de que pior, não pode vir por aí. Uma delas identificou a minha camisa de Morro de São Paulo e mostrou para um cara que tinha voltado de lá semana passada, encabeçando um papo. Socializava-me.

Até que o forró começou, o forró mais mal tocado que me lembro. Qualquer forró quando começa faz logo aquele estrondo de zabumba que acorda quem está dormindo e sacode quem está acordado. Menos aquele. Nem as meninas que estavam ali por perto, pedindo para serem tiradas faziam cara de muita vontade. Recuei, fui procurar algum alento - e me deparei com o Dj. Dormindo. Eu, morrendo de vergonha por não ter a menor condição de dar dois passos de forró naquela altura. A dor de cabeça aumentava e já estava a ponto de ir embora e fazer um proposta bem vagabunda do tipo "conheço um lugar super legal etc." para a primeira que manifestasse interesse. Me despedi não sem ouvir um "você já vai embora?". Hm. Aí chega o Hiro, e acabam as dúvidas. Quando o Hiro chega é hora de ir embora.

Epílogo: meia hora de dor de consciência antes de dormir por não ter feito a proposta. Se tivesse sido "fica mais um pouco" ao invés "você já vai embora?" provavelmente ia ser uma hora...


Rafael Lima
Rio de Janeiro, 30/10/2001

 

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