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Segunda-feira, 13/11/2006
Mabsa e seu jardim de estátuas
Verônica Mambrini

Às vezes a bênção vem travestida de desgraça. Há cerca de 20 anos, depois de ver quatro filhos crescidos e criados, Maria Amélia Botelho de Souza Aranha se tornou viúva. Em pouco tempo, a artista contida na mulher veio ao mundo. Não que Mabsa, como é conhecida, antes não lidasse com arte; desde a juventude estudou pintura e outras técnicas, como a iluminura - mas a mudança de estilo consolidada nas últimas duas décadas em sua obra é radical, urgente, libertadora.

Ela diz que sua arte não é mais que "os sonhos de uma criança". Na infância, brincando no zoológico que era da tradicional família de Maria Amélia, onde hoje fica o Parque da Aclimação, guardou na imaginação um estoque de imagens de animais retocados pela fantasia, capaz de alimentar ainda seu trabalho. A visita ao atelier a céu aberto da artista aconteceu a propósito da Bienal. O tema "viver junto" foi o mote para as (muitas) mostras paralelas que acontecem em São Paulo durante esse megaevento das artes visuais. Crueldade da indústria cultural, que se alimenta desses "ganchos": eventos, produtos - com interesse imediato que prenda(m) a atenção do leitor/ ouvinte/ telespectador. Triste precisar de uma Bienal para pôr em evidência o trabalho de uma artista como Mabsa. Essa mostra paralela abre ao público e a curadores o espaço de trabalho de sete artistas plásticas brasileiras, representadas internacionalmente pela crítica residente em Paris, Risoleta Cordula (as outras seis são Carmen Gebaile, Thaís Gomes, Paula Salusse, Gersony Silva, Lúcia Py e Sônia Talarico). As artistas gostaram tanto da resposta inicial do público que devem repetir a proposta ano que vem. Nessa temporada, os ateliers podem ser visitados até 30 de novembro.

Pedras Aladas
O Estúdio Pedras Aladas, em Indaiatuba, é residência e atelier de Maria Amélia. As esculturas se espalham pelo jardim e se integram às árvores e à piscina diante de um salão repleto de pinturas da artista. Com obras em museus mundo afora, é na Chácara Casa Verde Helvetia que Maria Amélia mantém a coleção pessoal. Na harmonia entre grandes espaços abertos e peças da área externa, dá para imaginar que ela recriou o jardim zoológico da infância com imagens afetivas e livres nos vôos da imaginação. No centro de um salão em que uma profusão de telas e painéis cobre as paredes, há um auto-retrato da artista, moça. A jovem bela e altiva é a única figura humana bidimensional pintada com técnica acadêmica. Em outros trabalhos, principalmente nas telas menores, as linhas humanas são castigadas e sofridas, reificadas como Picasso fazia com as "têtes de femme" pintadas em série.

Curiosamente, na escultura, a artista dá outro tratamento às formas humanas, entre as quais predominam as femininas. Jovens mulheres cheias de movimento integram conjuntos com animais ou estruturas geométricas. A seminudez e as vestes drapeadas como se cada estátua estivesse ao vento divinizam as formas. O masculino, como o homem-pássaro de uma das esculturas, aparece em formas antropozoomórficas, muitas vezes assustadoras - uma reação velada ao poder patriarcal?

Mas os animais são o assunto mais freqüente no atelier de Mabsa. Desde histórias como as de tamanduás que atacariam os desprevenidos que entrassem no mato, contadas pelo avô da artista, aos leões que existiam no zoológico do Jardim da Aclimação na época, as criações são marcadas por cores fortes e formas delicadas. Chama a atenção o conjunto de obras ao redor da piscina, com quatro peixes de pouco mais de meio metro de altura e enormes olhos saltados, lembrando criaturas abissais. Garças com o vente iluminado e leões de pedra convivem com outras formas indefiníveis, lembrando sapos e répteis.

É delicioso se perder em interpretações abertas dos possíveis significados das estátuas. Fora uma ou outra mais direta - como a pantera que ameaça subiu uma árvore, identificada por placa com uma mensagem sobre o poder -, quase todas as esculturas sugerem mais do que dizem. Há espaço para o lúdico nos macaquinhos pendurados pelas árvores, para o introspectivo e insólito de tartarugas posicionadas em lugares inesperados, para o sagrados nas cruzes e estátuas nuas. O conjunto das Pedras Aladas deixa ler uma história cheia de inferências arquetípicas. No dicionário, a palavra "imaginário" é também sinônimo de escultor, de fazedor de estátuas, além de significar o que não é real. E o trabalho de Maria Amélia, por aproximações possíveis com o surrealismo, se estabelece numa linguagem artística consolidada e mesmo datada, mas é outra abordagem lúdica, com a sutileza do olhar de criança, menos centrado nas pesadas referências sexuais cuspidas pelo inconsciente. Em vez delas, surgem com delicadeza menções ao árido e difícil mundo da opressão simbólica e das clausuras sociais, nas grades e traves presentes em várias de suas peças, e sempre com a contrapartida da cor: a cor que se sente, mais do que a cor que se vê.

Vale se deter no salão em que se concentram as pinturas. Mabsa é também uma grande colorista, e a intensidade e intenção com que escolhe sua paleta é emocionalmente próxima dos fauvistas. É ali também onde fica mais contrastante a dicotomia entre a forma humana torturada e o reino animal luminoso e exuberante. A organização das telas obedece outros critérios (muito mais decorativos e quiçá afetivos) do que uma exposição, e acaba se tornando interessante o jogo de isolar um trabalho entre tantos e depois novamente mergulhar na informação visual transbordante, confundindo os sentidos.

Para ir além
É preciso agendar as visitas por e-mail ou telefone: (11) 3031-3851. (Av. Wineson Parque, nš 135 - Chácara Casa Verde Helvétia - Indaiatuba/SP.) Até 30 de novembro.

Verônica Mambrini
São Paulo, 13/11/2006

 

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