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Terça-feira, 28/11/2006
Confissões de um crítico em tempos de internet
Marcelo Spalding

Para mim a tecnologia é como uma onda, uma enorme onda - ou uma sucessão de ondas - que vem das profundezas do oceano e arrasta o que está pela frente. Mas não destrói, transforma. Assim foi com o teatro, assim foi com a música e assim está sendo com a literatura. Em tempos de internet - ou seja, num tempo em que nem o cinema nem o vídeo são mais novidades - é impossível atribuir ao livro e a literatura a importância de outros tempos, uma importância capaz de colocá-la no vestibular ao lado da química, da história, da matemática. E quem mais sente isso são os escritores e estudiosos da literatura, cada vez mais distantes do que chamaríamos o "público médio", ou o leitor.

Com este nariz de cera pretendo fazê-lo entender o quão importante é este espaço que tenho ocupado há um ano no Digestivo Cultural. Porque se por um lado a literatura é preterida pelos grandes meios - e a meia dúzia de espaços que ainda falam de livros e publicam crítica revezam os mesmos nomes de sempre -, por outro a internet abriu a possibilidade de se formarem núcleos, guetos, grupos de interesses restritos, particulares e exóticos (como os dos que gostam de ler!). Mas também a internet é um mar de conteúdo e poucos conseguem se destacar, criar credibilidade, constância, e por sorte deste reles colunista o Digestivo é um dos que têm conseguido.

Comecei a escrever no site mais ou menos por acaso. Havia sido publicada no Digestivo uma crítica sobre um livro da Casa Verde, grupo do qual faço parte aqui em Porto Alegre, e eu estava com uma resenha encalhada sobre o romance Um Amor Anarquista. A resenha tinha sido escrita para o site da Aplauso, mas até hoje não sei porque o editor de lá, cujo nome declino, sequer me disse algo como "seu texto está vago", "ruim" ou "não gostamos do seu enfoque ideológico". Simplesmente não respondeu (e olha que era meu amigo!). Então mandei pro Digestivo, e qual não foi minha surpresa quando o Julio e o Fabio não só publicaram como elogiaram muito o texto. Dias depois fiz uma resenha sobre a novela Bang Bang (então eu ainda me sentia mais à vontade para falar de tevê e jornalismo do que de livros), e eles me convidaram para ser colunista do site.

Foi com alegria e apreensão que vi aquela caixa de livros chegar na minha casa: por onde começar? Será que dou conta? Alguns eu já tinha ouvido falar, outros não fazia nem noção. E pior que isso: não estava seguro sobre como escrever uma crítica literária. Você sabe, a faculdade de jornalismo forma generalistas, especialistas em nada, então tive de aprender com a leitura e a feitura. Com o Digestivo.

Hoje me perguntam, em algumas palestras ou oficinas, dicas para novos escritores. E eu digo que o escritor deve fazer como o músico, ser crooner. Mas ao invés dos bares da vida, o espaço do crooner literário são os sites, e hoje sei que o Digestivo foi um ótimo espaço para eu exercitar esse texto que não pode abrir mão da qualidade mas também precisa ter apelo de público, precisa da consistência acadêmica mas não pode abrir mão da factualidade jornalística. Um texto ao feitio das músicas do crooner.

Dois momentos neste ano de trabalho me marcaram: a primeira resenha em que tive de fazer dura crítica a um livro e a resenha de um romance que considero dos melhores que se escreveu em língua portuguesa. O primeiro foi um livro do Leonardo de Moraes, que no fim se mostrou um cavalheiro, ao qual tive de fazer algumas críticas. Ele leu a resenha antes dela ser publicada e me enviou alguns comentários, naturalmente chateado que estava. Mudei alguma coisa da resenha, mas deixei a impressão geral. Lembro de sair de casa naquele dia me questionando se não seria melhor se omitir ao invés de fazer uma crítica negativa. Afinal de contas, se trata de um escritor jovem, iniciante, como eu, como nós. Aí lembrei de um texto do Machado de Assis de 1865, chamado "O ideal do crítico", em que o mestre diz coisas como: "a crítica deve ser sincera, sob pena de ser nula"; "não compreendo o crítico sem consciência"; "para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial". Quando voltei para casa, respondi o e-mail ao Leonardo e lembro que a certa altura disse que eu poderia muito bem ter elogiado o livro e depois mandado currículo para trabalhar no governo de São Paulo (ele é assessor direto do Cláudio Lembo), mas como ele mesmo acreditaria nas minhas críticas se estas fossem sempre elogiosas? Como os cinco ou seis leitores que me acompanham coluna a coluna vão acreditar em mim se houver sistematicamente o elogio ou a crítica?

A outra experiência, oposta, foi com o romance Um defeito de cor, romance de quase mil páginas da mineira e também jovem Ana Maria Gonçalves. É provável que o livro não se torne best-seller nem ganhe espaço na mídia, mas de certo será muito estudado em universidades e eu sabia que ao publicar a resenha ela se tornaria uma - entre tantas outras - referência para estudos acadêmicos de recepção da obra em sua época. Por isso tive o cuidado de levantar alguns aspectos da obra que me chamaram a atenção - como a extensão, é claro, e a oralidade - mas sem fechar questão sobre a maioria das coisas. No título, por exemplo, evitei escrever algo como "O grande romance dos anos 2000". Ainda que "o grande" pudesse ser um trocadilho com a extensão. Mas não, preferi uma postura menos ufanista e até as perguntas que enviei para a autora foram nessa direção, o que me faz ter a impressão de que ela não saiba o quanto este leitor aqui gostou do livro.

Enfim, ainda que sejam menos de 25 colunas, um ano e pouco de textos quinzenais, já posso afirmar que é possível, sim, se fazer crítica literária em tempos de internet, e que as dificuldades e os prazeres não são menores, muito pelo contrário. Hoje temos uma infinidade de livros publicados por ano e selecionar o que é e o que não é assunto já é a primeira tarefa de um crítico. Além disso uma bobagem publicada na internet não é uma bobagem de um dia, como no jornal, ou uma semana, como na revista, ela perpetua-se pelo ciberespaço enquanto o site não sair do ar. Mas no fim das contas vale a pena, vale pelo crescimento pessoal, pelo meu gosto particular por levantar polêmicas e, acima de tudo, por demonstrar a vivacidade da literatura em tempos de internet.

Marcelo Spalding
Porto Alegre, 28/11/2006

 

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