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Sexta-feira, 8/12/2006
Escrevendo no Digestivo
Jardel Dias Cavalcanti

Meu primeiro contato com o site Digestivo Cultural se deu, se não me engana a memória, através da indicação do poeta Donizete Galvão. Ele havia lido uma resenha que eu havia escrito sobre um dos livros do poeta Ronald Polito e me sugeriu que enviasse o texto por e-mail para o site, pois achava que era um espaço interessante para a publicação da minha crítica.

Enviei o texto e o editor prontamente o publicou. Quase um ano depois, creio, enviei outra resenha para o Digestivo sobre outro livro do mesmo poeta que havia resenhado antes. O Julio Daio Borges publicou e me enviou um e-mail dizendo que queria falar comigo por telefone, pois tinha interesse que eu escrevesse mais coisas para o seu site.

O editor me ligou, nos falamos por alguns curtos minutos, não me lembro sobre o que precisamente (a impressão que ele teve de mim foi de que tenho a voz mansa), e o convite foi reiterado e eu aceitei. Fiquei um pouco apreensivo com esta coisa de escrever a cada 15 dias, pois eu fazia mestrado em história da arte na Unicamp e temia que pudesse me atrapalhar. Mas era uma experiência nova, diferente de escrever textos acadêmicos e isto era, no fundo, o que eu queria mesmo. Deu certo, pois defendi o mestrado e fui para o doutorado sem parar de escrever para o Digestivo.

Inicialmente escrevia de 15 em 15 dias, depois comecei a escrever semanalmente. Eu me envolvi com o maior prazer nesta tarefa. A sugestão do editor era que eu escrevesse sobre cultura de uma forma geral. O que me parecia excitante, pois tenho interesse por tudo, música, poesia, filosofia, cinema, artes plásticas, teatro e até, de certa forma, por política (apesar da náusea).

O Julio nos avisou de que não haveria pagamento, e creio que ainda não há, pelos textos. Mas nos eram enviados livros recém-lançados para serem resenhados, alguns custavam uma fortuna (30, 40, 60 reais), que ficavam como pagamento pelos textos. Um bom acordo. Mas o fato interessante é que, como dizia Schopenhauer, "os honorários são a perdição da literatura. Todo autor se torna um escritor ruim assim que escreve qualquer coisa em função do lucro". Eu acho que uma das coisas mais interessantes nesse processo é que no Digestivo se escreve por prazer e por necessidade interior de se expressar. Dane-se a moeda. Não se pode fazer tudo na vida em função dessa maldita necessidade de dinheiro. E o prazer de escrever não é pragmático - podemos escrever no máximo, como dizia Roland Barthes, porque queremos ser amados.

Assim comecei a enviar textos, alguns sobre livros que eu gostava ou sobre livros recém-lançados que eu recebia do próprio editor. Em alguns momentos, no início, o editor achou minha escrita um pouco presa, acadêmica, me pedindo para soltar as rédeas. Isso foi importante para mim, pois me forçou a experimentar uma forma diferente de pensar e escrever.

Além de resenhas ou comentários sobre obras literárias, outro tipo de coisa que eu gostava de fazer era entrevistar pessoas. Entrevistei para o Digestivo vários poetas, historiadores, tradutores (entre eles Augusto de Campos, Donizete Galvão, Julio Castañon, Armando Freitas Filho, Regis Bonvicino, Jorge Coli, Carlos Fico, Ítalo Tronca, etc.). Comecei com entrevistas com pessoas com as quais eu tinha algum tipo de relação e que não me negariam a participação delas. Teria feito muitas outras entrevistas se o editor não me tivesse sugerido que apenas escrevesse e não entrevistasse mais. O próprio Julio Daio Borges acabou depois adotando esta experiência, também fazendo ótimas entrevistas para o Digestivo (o que é, sem sombra de dúvida, muito importante e do gosto dos leitores).

Ler obras literárias e poder depois comentá-las sempre teve para mim o sabor dos manjares divinos. E publicar estes comentários no Digestivo me era também absolutamente prazeroso. Lembro-me particularmente com imensa felicidade de quando estava escrevendo sobre a obra A Tempestade, de Shakespeare, que eu relacionava a uma obra do pintor americano Pollock. Para fazer o texto, reli a obra de Shakespeare e fiz uma pesquisa saborosa sobre o que os mais importantes conhecedores do autor haviam escrito sobre esta peça. A descoberta de que Pollock havia pintado inspirado na peça me proporcionou a possibilidade de juntá-los no meu comentário. O resultado do texto me pareceu bastante satisfatório.

Agora, o texto que mais gostei de escrever foi sobre Florbela Espanca, no momento da reedição de sua obra completa no Brasil. O fato do Julio me ter enviado este livro foi uma benção. Sempre me emociono ao reler o texto que escrevi. Foi um dos que enviei aos amigos e do qual mais recebi comentários, pois também se sentiram tocados pela poetisa portuguesa. E minhas entrevistas ouro foram com Augusto de Campos e Jorge Coli, o primeiro, o poeta e tradutor que mais admiro e o segundo, um historiador da arte que também admiro muitíssimo e que me deu a honra da sua bela entrevista.

A recepção dos leitores era também uma coisa interessante, para o bem ou para o mal. Primeiro caso: ser elogiado por um texto nos levava a caprichar cada vez mais nos próximos que oferecemos aos leitores. Segundo caso: às vezes receber críticas mal-humoradas, mais baseadas em rancores do que em inteligência, nos chateia de certa forma. Mas creio que a recepção do nosso trabalho, nos dois casos, ainda assim, é sempre bem-vinda. Como dizia um mestre: é melhor ficar atento à crítica e desconfiar dos elogios. Um pouco de humildade não faz mal a ninguém.

Além de ser participante ativo do Digestivo, outro prazer é ser leitor. Há uma infinidade de textos excepcionais que surgem sempre no Digestivo. O que mais me emocionou foi um ensaio sobre o romance Moby Dick, que imprimi para xerocar para várias pessoas também lerem. Achei o texto uma pérola.

O único incômodo que senti em alguns textos de colunistas foi quando a coisa ia rumando para o confessionário ou narrativa chatíssimas do dia-a-dia do autor, coisas como: acordei, fui à padaria, gosto de comer isso e aquilo e outras bobagens irremediavelmente chatas ligadas à vida banal dessas pessoas. Eu esperava idéias e não o ego inflado de alguns autores.

Outra felicidade foi assistir a projeção do Digestivo aumentando a cada dia. A seriedade com que o editor sempre trabalhou mereceu a boa acolhida do seu público. A capacidade de organizar tantos autores, tantos textos, tantos comentários e não deixar a coisa decair num pântano de bobagens realmente é louvável. É sinal da inteligência do editor. E mesmo ver o próprio editor amadurecendo junto com sua obra, o Digestivo, é uma felicidade e notável reflexo de que tudo está indo muito bem.

Estou muito ligado ao Digestivo, indiquei e sempre indico o site para todas as pessoas que conheço, amigos e alunos, e para as que conheço apenas virtualmente (não é a mesma coisa?) e fui sempre buscando criar uma pequena legião de leitores para o site.

Tive sempre uma idéia clara do que pretendia com meus textos. E essa idéia era resumida na frase de Debussy, que sintetizava meu ideal de crítico: "Não tenho a pretensão de fazer 'crítica', mas de expor, simples e francamente, minhas impressões. O que se deve fazer é descobrir os principais impulsos que deram origem às obras de arte e o princípio vivo que as constitui".

Se consegui fazer isso, dou graças ao próprio Digestivo que me abriu espaço para exercitar esta busca.

Jardel Dias Cavalcanti
São Paulo, 8/12/2006

 

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