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Quinta-feira, 3/1/2002
A História das Notas de Rodapé
Lisandro Gaertner

Se alguém for perscrutar as origens das notas de rodapé, com certeza descobrirá serem elas tão antigas quanto a própria escrita. No momento em que se passou do relato oral - cercado de dúvidas e instabilidade - para o relato escrito - na tábua [1], como é comum se dizer - o homem procurava na verdade não apenas uma forma perene e segura de transmitir seus conhecimentos, experiências e desejos; o homem procurou com a escrita se entender e se explicar melhor. Logo, a nota de rodapé, pelas suas características únicas, não é só uma parte integrante e imprescindível da escrita, como também serve de espelho e exaltação da sua verdadeira razão de ser.

Contudo, não contradizendo a afirmação acima, não podemos ligar, como fazemos conceitualmente, a criação da escrita com a das notas de rodapé, literal e cronologicamente. Em primeiro lugar, não havia nos primeiros séculos da linguagem escrita a noção de "rodapé" [2]. O seu advento se deu realmente com os primeiros comerciantes fenícios que, ao usarem o papiro na feitura de seus contratos, incluíram automaticamente as notas com o objetivo de fornecer maiores explicações e prover de especificações as suas transações comerciais [3]. Em pouco tempo, essa invenção ou descoberta [4], que teve a sua origem no comércio, passou a ser utilizada na literatura e nas ciências.

O primeiro relato que se tem de sua utilização em obras literárias é referente a uma antiquíssima edição dupla, agora perdida, da ILIADA e da ODISSÉIA onde as notas de rodapé foram utilizadas para se explicar a povos não helênicos o papel e as peculiaridades das divindades gregas. Pouco tempo depois surgem os trabalhos de Heródoto que, na sua forma romanceada de contar a História, as utilizou como importantes ferramentas de explicação e retórica, sendo elas, às vezes, mais interessantes que o texto central. É curioso notar que esse recurso - hoje tão comum na produção de textos filosóficos - ficou de fora de suas primeiras obras, em contraposição aos tratados referentes a outras ciências. Com o passar dos séculos e com o avanço da sociedade tecnológica e tecnologizada [5] per si, os textos científicos se tornaram menos dependentes das notas de rodapé e os filosóficos, mais. Tal fato revela, à primeira vista, que as ciências são hoje mais claras ao público em geral e a filosofia mais obscura -- um movimento humano e, portanto, cultural já esperado e descrito por Augusto Comte [6].

Com o advento do Império Romano, as notas de rodapé realmente floresceram. Os satiristas e historiadores da época encontraram nessa ferramenta um grande aliado para traçar um perfil exato e opinativo - uma impossibilidade, a princípio - das culturas, terras e povos que se encontravam sobre o domínio de Roma e de sua PAX [7].

Com a queda do Império, as notas sumiram de vista de olhos ocidentais, mas no Oriente abundavam. Os chineses com sua cultura milenar já as utilizavam com maestria construindo textos dentro de textos e criando um tipo de narração que só foi surgir no Ocidente com Jorge Luís Borges [8].

No Ocidente, a Igreja foi a responsável pela reintrodução das notas de rodapé depois das invasões bárbaras. Primeiro, elas foram usadas como uma forma de explicar aos recém alfabetizados reis o monoteísmo, traçando paralelos entre as divindades pagãs gaulesas e saxônicas. Muitos autores chegam a afirmar que a "criação" dos santos partiu dessas explicações que, mal entendidas pelos novos líderes políticos da Europa, transformaram apóstolos e mártires em pequenas divindades [9].

O domínio das notas de rodapé pela Igreja só foi acabar na época do Iluminismo. Esse movimento cultural e ideológico surgido no meio do 2º milênio não poderia de forma alguma se furtar de usar um instrumento que tão bem representava a sua luta: a iluminação - traduzida aqui por entendimento [10] - do homem. Até o século vinte, graças à ligação formada com Iluminismo, elas se mantiveram dentro do ramo dos conhecimentos científico e filosófico, mas fora das artes. A única tentativa de sua utilização dentro da literatura nesse período foi realizada pelos ultra-românticos alemães que, na sua revista ILUMINARIS, construiam textos apenas com notas de rodapé. Apesar dessa ousada empreitada, muitos crítcos literários não os consideram verdadeiros artistas já que sua produção era voltada para a manifestação de um projeto filosófico [11].

Essa situação mudou na virada do século vinte. Com o surgimento das idéias modernistas e com a intensa experimentação artística, as notas apareceram em campos nunca antes por elas adentrados, como a música [12] e as artes pláticas [13]. O cinema e os quadrinhos, as novas artes, também se utilizaram de recursos correlatos; no entanto, devido à estrutura visual, a sua (das notas) importância foi menosprezada [14].

No último quarto do nosso século, com a proliferação da mídia computadorizada e com o estabelecimentoda rede digital de informação - Internet, Net ou Web -, as notas assumiram uma nova roupagem se apresentando como sub-rotinas ou endereços eletrônicos que ainda servem a mesma função de esclarecer e complementar - às vezes excessivamente [15] - o inesgotável conhecimento da raça humana.


1- O termo "na tábua" data da época de Moisés, onde a escrita, avalizada por Deus, graças à entrega das tábuas dos dez mandamentos no Monte Sinai, transformou a escrita - no mundo ocidental, seja feita a ressalva - em uma atividade sagrada; e portanto tudo o que era encontrado escrito "na tábua" - o veículo comum dessa forma de linguagem - não poderia ser contestado. [Volta]

2- É claro que existiam os rodapés, que já eram enontrados inclusive nos jardins suspensos da Babilônia, como nos diz Ebbermans na sua obra "Os mistérios arquitetônicos do Mundo Antigo", Mendaz Editora, 1923, São Paulo. No entanto a área escrita, comumente a pedra ou tábua - ver nota [1] - não permitia a existência desse espaço especial que só foi surgir com os papiros. [Volta]

3- Essa prática antiga está atualmente sendo extinta nos meios jurídicos. "O grande dilema da direito moderno está na criação de um texto simples, sem desvios ou caminhos obscuros. Esse dilema se resumiria, sim, com a extirpação das notas de rodapé de nosso meio e de nossa comunicação" - Juiz Alberto Souza, IV Encontro Nacional de Redação Jurídica, Uberaba, 1976.[Volta]

4- Pela sua ligação intrínseca com a escrita, a nota de rodapé, segundo o filólogo português Joaquim de Souza, "não poderia existir sem a letra escrita, a qual, sem ela (a nota de rodapé), também não existiria. O que a constitui como um passo evolutivo e natural da evolução das letras". [Volta]

5- "A grande questão que temos nesses tempos modernos é se a tecnologia nos controla ou se somos controlados pela tecnologia ". Finneas Rupert, sociólgo inglês, 1894-1945. [Volta]

6- No seu projeto positivista, Augusto Comte divide a história humana em três fases distintas e não concorrentes: a religiosa, a filosófica e a da razão ou científica. [Volta]

7- O próprio termo PAX ROMANA foi introduzido por César em um de seus famosos discursos numa nota de rodapé! [Volta]

8- "A obra de Borges está recheada por e pode ser vista como notas de rodapé que não se referem a texto algum, mas sim à própria vida" Júlio Cortazar, Crítica da Moderna Literatura Latino Americana, Silvo Editora, 1992, Porto Alegre. [Volta]

9- No Ramo de Ouro, Frazer faz um estudo mais detalhado desse fenômeno incluindo uma lista de correspondência entre santos e deuses pagãos. O mesmo foi feito por Jorge Duboc em seu estudo sobre as divindades afro-brasileiras. [Volta]

10- O entendimento do homem não foi alcançado pelo iluminismo, segundo o filósofo françes François Artaud, por causa das notas de rodapé. "O recurso utilizado para o esclarecimento serviu em úlitmos fins ao obscurecimento e jogou o iluminismo nas trevas em que ele hoje se encontra". Le Obscure Illuminism, Gerbot, 1967, Paris. [Volta]

11- O que esses críticos não levaram em consideração é que o projeto filosófico dos ultra-românticos procura uma explicação do ser pela linguagem em suas mais variadas formas. Tal projeto muito se aproxima da obra de Borges, conforme disse Júlio Cortazar - ver nota [3]. [Volta]

12- O jazz, nascido nas comunidades negras dos Estados Unidos, com seus acordes às vezes dissonantes e o seu propósito de criar um diálogo entre os instrumentos que o caracterizam, fez uso de "sub-rotinas musicais" - termo cunhado pelo baixista William "Getty" Gates - que se assemelham "àquelas frases pequenas do fim das páginas", idem. [Volta]

13- O trabalho de BoKû nas suas telas africanas (realizadas no período 1964-1967) procurou transformar o título da obra - a sua explicação - a sua nota de rodapé, em seu sentido e razão únicos. [Volta]

14- Esse menosprezo não partiu da utilização em si das notas, mas sim da novidade que elas representam em seus meios acadêmicos. O Crítico de Arte Leon Guirmand chegou a afirmar certa vez: "Essas novas tecnologias, introduzidas à força nas artes, não merecem e, por muito tempo, não merecerão nem uma nota de rodapé no Grande Livro da História da Arte". [Volta]

15- Eu sei que qualquer texto pode muito bem ser lido sem as notas de rodapé. Se o que é dito nelas fosse realmente importante, qual seria o objetivo de colocar tal informação em letras tão miúdas no fim de uma página para nos tirar a atenção do texto principal e interromper a nossa leitura? As notas de rodapé como uma série de criações humanas não têm uma razão verdadeira e servem, como tudo no mundo, para satisfazer apenas a quem escreve. Ou será que vocês pensam quem alguém ainda escreve pensando em ser lido? Se ninguém pensa mais nisso, imagine só aqueles que escrevem as notas de rodapé...

Lisandro Gaertner
Rio de Janeiro, 3/1/2002

 

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