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Quinta-feira, 7/12/2006
Os gastos da família brasileira com cultura
Marcelo Maroldi

Na última semana, o IBGE divulgou o resultado de uma pesquisa que mapeou as despesas, por categoria, das famílias brasileiras em 2003. Embora o assunto tenha sido noticiado em praticamente todos os jornais, portais, etc., não creio que ele tenha recebido uma cobertura que se iguale a sua relevância, nem que tenham sido discutidos ou analisados estes dados (em especial nos quesitos "Cultura" e "Educação", itens que mais interessariam aos leitores deste Digestivo). Claro, os números em si não podemos questionar (e estes é que foram divulgados), mas não li absolutamente nada que discutisse, ainda que minimamente, os motivos que geraram esses números, se estes são satisfatórios ou não, se são explicáveis, se refletem algum setor da economia, se isso afeta a produção intelectual nacional (e de que forma), etc., e, em seguida, sugeridas ações e iniciativas para incrementar esses números no futuro. Não vi tal discussão...

No nosso país pobre, quase miserável (embora o Mainardi discorde disso), os gastos familiares com "Cultura" assumem o quarto ou sexto lugares na lista, dependendo da categoria em que enquadremos o item "Telefonia" (aliás, internet até pode ser "Cultura", mas Telefone certamente é destruidor de cultura, não tenho dúvida alguma...). Se considerarmos "Telefonia" (que engloba telefone fixo, celular e internet) no quesito "Cultura", a família brasileira coloca esse item em quarto lugar na lista (atrás de "Habitação", "Alimentação" e "Transporte") com (pasmem!) 7,88% da renda mensal, isto é, cerca de inesgotáveis e impactantes R$ 115,00. Se não consideramos "Telefonia" em "Cultura", os gastos limitam-se a singelos 4,4%, ou R$ 64,00, e o item despenca para o discreto sexto lugar da lista (e perderia, então, posições para "Saúde" e "Vestuário"). Até aí, diria eu, não há nada de anormal, afinal, não é um disparate nem uma loucura uma família gastar mais com os itens que estão a frente da lista e menos com "Cultura". As pessoas precisam comer, precisam morar, comprar remédio, etc., para viverem, e "Cultura" não é fundamental para sobrevivência (porque é o que boa parte da população nacional faz: sobrevive (apenas)).

O nosso país tem políticas culturais precárias (para não dizer inexistentes), a renda per capta é baixíssima, a economia não cresce, o número de analfabetos é alto, as vagas em terceiro grau escassas, o número de bibliotecas insuficiente, e por aí vai. Portanto, eu fico é surpreso com este item estar (na minha opinião) tão bem classificado! Por que um pai de família gastaria mais que 60 reais com "Cultura" se o dinheiro é curto e ele possui outras prioridades?, além disso não leva a lugar algum! (numa outra reportagem, dias depois, li que os profissionais que vivem de "Cultura" no Brasil recebem em média 800 reais por mês de salário e são cerca de 6 milhões de pessoas). A cultura não enche a barriga, só a alma, mas a alma não sente fome e nem precisa vestir sapato, ela pode ficar com a sobra do orçamento!

Bom, em primeiro lugar, importantíssimo dizer que se considera gasto com "Cultura" a compra de eletrodomésticos ligados a cultura (como TV, DVD e rádio), além de festas, por exemplo. É claro que isto não deixa de ser "Cultura", não posso dizer que não é, mas, cadê os gastos com livros, com teatro, museu, shows? É claro que isso foi apenas uma pequena ironia deste colunista, o povo brasileiro nem sabe o que é isso (e somente uns poucos sortudos é que sabem). Ninguém gasta nada com isso porque o povo não tem dinheiro para gastar e tampouco interesse para consumir essas coisas. Mesmo entre os que têm mais dinheiro, não há um "clima cultural" (nunca vi, por exemplo, nenhum amigo meu comprando livro que não seja para presente de aniversário de alguém, ou visitando museus, indo a exposições... nunca vi.). Não há um sentimento de quão importante é investir em cultura (e quando se tem essa consciência, não se tem amor por esta... parece que está sempre faltando algo, uma motivação para esse consumo). Além disso, as pessoas jamais vinculam cultura com diversão e entretenimento. Eles enxergam essas coisas de maneiras desconexas, assuntos que, para eles, nem sempre são ligados. Diversão é ir ao show, cultura é ir ao museu, coisas assim...

Outro dado interessante da pesquisa: os brancos gastam mais que os negros e os pardos com "Cultura". Claro, óbvio! Os brancos brasileiros recebem, segundo o censo, mais dinheiro, na média, que os negros e os pardos, logo, gastam mais. O dia em que todo mundo ganhar um salário parecido é que veremos se alguma raça gosta mais de gastar com cultura do que outra, antes disso não dá pra dizer nada. Ademais, os brancos alcançam mais as universidades (onde supostamente se consome mais produtos culturais) que os negros e os pardos e inserem-se mais no mercado profissional (e em melhores posições) dos que os outros grupos. Além desse dado, verificou-se que a família que tem como pessoa de referência alguém com ensino superior, gasta dez vezes mais com cultura do que uma família que possui a pessoa de referência sem instrução alguma (R$ 33,00 contra elevados R$ 391,00). Aqui sim temos um indício forte de que instrução (ou seja, educação) está diretamente ligada a aquisição e consumo de cultura pelas pessoas. Eu ousaria dizer que alguém instruído e com cultura ao menos mediana consome algumas revistas, jornais, um ou outro livro (mesmo que de auto-ajuda), vai ao cinema (esse item sem dúvida puxa a fila do gasto com cultura!), etc. e, assim, gasta mais. E, claro, não esquecer que, segundo o IBGE quem tem nível de escolaridade mais alto ganha salário mais alto (e, assim, gasta mais porque também tem mais). Em outras palavras, tem a faca e o queijo na mão (dinheiro para gastar e vontade de consumir).

Por fim, mencionarei a posição do item "Educação" na pesquisa (eu juro que nem queria fazê-lo!). Sétimo lugar, isso mesmo, sétimo. As escolas brasileiras são tão boas e o governo cede todo o material escolar dos estudantes, de modo que a querida família brasileira nem precisa gastar com isso, não é verdade? Ah, isso é na Coréia, confundi. No Brasil é diferente mesmo: as crianças estão fora da escola ou em escolas públicas que não as ensinam a ler e nem a escrever, e o governo está resolvendo tudo isso dando a magnífica bolsa-família... Será que ninguém pensou que para se gastar com cultura a pessoa tem que ser melhor educada?, e como não se educa nunca, nunca irá consumir?! Quem é que está correndo atrás do próprio rabo, afinal? (Eu já nem sei mais... minha cabeça está queimando com esse assunto maldito, ah, eu deveria voltar aos meus textos de amor, caríssimos...)

Qualquer iniciativa de melhorar esses percentuais apresentados (só os percentuais, pois ganhar posições é quase impossível) resultará, em algum momento mais breve ou menos breve, em discutir apenas duas coisas: como distribuir melhor a renda no nosso país e como imprimir na população a sensação de que a cultura e a educação são necessárias para o bem-estar e crescimento econômico, social e, principalmente, pessoal. Distribuir a renda não tenho a mínima idéia de como conseguir (nada de crescer o bolo para depois dividi-lo, por favor!), não sou economista (ainda bem), mas provavelmente isso é conseguido através da igualdade de acesso a escola e a faculdade, o que resultará em acesso a empregos no médio prazo, e nunca através de políticas medíocres e populistas como tem sido. Para conseguir fazer as pessoas entenderem que é importante estudar, ter acesso a arte e a cultura (e então as incorporar em suas vidas e consumi-las), é somente através da educação (básica principalmente, quando o menino poderá perceber que sem isso ele será um excluído socialmente e, pior, um ser humano paupérrimo de conteúdo), do despertar do gosto artístico, do interesse pelo conhecimento, por respostas, por aprofundamento ideológico, cultural. Infelizmente é assim. Depois disso, se nada de errado acontecer, as famílias daqui 50 anos gastarão mais com cultura e os reflexos serão evidentes na nossa sociedade.

Marcelo Maroldi
São Paulo, 7/12/2006

 

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