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Terça-feira, 12/12/2006
Algumas leituras marcantes de 2006
Luis Eduardo Matta

Há anos que os livros são parte indissociável do meu dia-a-dia. Graças a eles, vivo várias vidas e tenho o privilégio de fazer viagens maravilhosas sem sair do lugar. Pode parecer um lugar-comum, mas saibam os meus caríssimos leitores que é nos lugares-comuns que, muitas vezes, residem as grandes verdades. Não devemos, portanto, desvalorizar os lugares-comuns. Pensem nisso.

O propósito desse artigo é partilhar um pouco das minhas expedições pela literatura ao longo desse último ano. 2006 foi um ano pródigo e extremamente rico em leituras. Mais até do que os anteriores pois, em 2006, me distanciei ainda mais da televisão. É claro que não a abandonei totalmente. Volta e meia assisto a algum programa, mas a televisão tornou-se um elemento raro no meu dia-a-dia. Posso afirmar, sem medo de errar que, caso as emissoras dependessem de mim para sobreviver, estariam todas fechadas. Hoje, por mais absurdo que possa parecer, ligo a televisão para ouvir rádio. É embalado pelas estações de jazz, música clássica, música eletrônica e, principalmente, new age que o meu serviço de TV por assinatura oferece, que eu passo as minhas noites, mergulhado nos livros, nesse que é o melhor meio de entretenimento já inventado pelo homem: a leitura de literatura. Quem nunca leu por paixão e fez disso um hábito, não sabe o que está perdendo.

Leio uma média de quatro a cinco livros por mês, todos os dias. Com base nessa conta, posso afirmar que, em 2006, li entre quarenta e oito e sessenta livros. Praticamente todos, à exceção de um ou dois, foram de literatura. Nenhum propriamente ruim. Havia uns poucos livros medianos, mas a maioria era excelente. Livros extraordinários, que preencheram os meus dias e noites de uma maneira excepcional. Só quem lê regularmente e com prazer é capaz de compreender isso. Não é uma sensação que possa ser compartilhada numa conversa, ela precisa ser vivenciada individualmente. Nunca haverá uma atividade tão intensa e tão envolvente quanto a leitura apaixonada de um bom livro. Nem as delícias da boa mesa, que eu prezo tanto. Por isso tenho a convicção de que a literatura nunca desaparecerá, pela simples razão de que ela é insubstituível.

Dessas cerca de cinco dezenas de livros que li, destaco sete que me arrebataram particularmente e, cujas impressões, faço questão de partilhar com os leitores deste artigo. São livros que recomendo vigorosamente, cada qual no seu gênero, cada qual no seu estilo, cada qual com suas peculiaridades e sua voz própria, mas todos maravilhosos, resultado da mente fértil de autores sensíveis e talentosíssimos, que merecem toda a minha gratidão, aplauso e admiração pelos momentos inesquecíveis que me proporcionaram. Notem que a lista abaixo não foi organizada por ordem de importância. Gostei de todos esses sete livros da mesma maneira, portanto leiam-na como se todos os livros estivessem relacionados no mesmo lugar de destaque, no alto de um pódio imaginário.

* Zorobabel: Reconstruindo o Templo, de Zé Rodrix (Record, 2005, 642 págs.) - Na minha opinião, Zé Rodrix é um dos mais importantes nomes do romance brasileiro contemporâneo e juro que não consigo compreender como a mídia ainda não reconheceu isso ou, pelo menos, não da maneira como este extraordinário escritor merece. Zé Rodrix, nome artístico de José Rodrigues Trindade, é uma das figuras mais versáteis da cultura brasileira contemporânea. Maestro, compositor, cantor, arranjador, publicitário, ator, professor, escritor e dono de uma inteligência prodigiosa e um enorme carisma, Zé Rodrix demonstra em Zorobabel: Reconstruindo o Templo, como a criatividade, aliada a uma maneira clara e certeira de contar uma história, pode produzir uma obra literária de vulto e, ao mesmo tempo, de grande apelo junto aos leitores. Zorobabel: Reconstruindo o Templo, é o segundo volume da Trilogia do Templo, que teve início com o igualmente extraordinário Johaben: Diário de um Construtor do Templo, lançado em 1999 e deverá ser fechada com chave de ouro, em 2007, com Esquin de Floyrac: O Fim do Templo. O romance mistura realidade e ficção para reviver um período conturbado da Antiguidade, que começa no auge do Império Babilônico, época em que as tropas de Nebbuchadrena'zzar (Nabucodonosor) invadiram Jerusalém e destruíram o bíblico Templo de Salomão, provocando a primeira diáspora judaica e culmina com a queda da Babilônia em poder dos persas comandados por Cyro, o Grande. O protagonista é Zorobabel, um jovem judeu que cresce como escravo na Babilônia e, depois da libertação de Jerusalém pelos persas, torna-se governador da Judéia, reedificando o Templo. Trata-se de uma saga épica e fascinante sobre os primórdios da Maçonaria que, assim como o primeiro volume da trilogia, só encontra paralelo na literatura brasileira, no que Nélida Piñon realizou com o seu maravilhoso Vozes do Deserto. O livro tem mais de seiscentas páginas que são lidas com voracidade em uma semana, se tanto. Um dos grandes romances brasileiros publicados no século XXI, que irá fascinar todos aqueles que adoram um livro repleto de aventura, capaz de nos transportar até um passado, cuja magia, permeia o nosso imaginário há séculos.

* Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa (Alfaguara, 2006, 304 págs.) - Que me perdoem os fãs-clubes de Gabriel García Márquez, Isabel Allende ou Carlos Fuentes - de cujas literaturas, aliás, sou leitor e admirador incondicional - mas, na minha humilde opinião, o melhor escritor hispano-americano vivo é Mario Vargas Llosa. A prosa de Vargas Llosa tem uma característica que salta aos olhos e que me agrada sobremaneira: ele é capaz de contar muito bem uma história, valendo-se de uma linguagem refinada e bastante sofisticada, mas de uma maneira surpreendentemente clara, sem nenhum artifício estilístico. Todos os seus romances, pelo menos os que tive o privilégio de ler, são excepcionais e esse Travessuras da Menina Má não foge à regra. O livro conta a história do peruano Ricardo Somocurcio, que na Lima dos anos cinqüenta, em plena adolescência, conhece e se apaixona pela jovem e fascinante Lily - a tal menina má do título - uma "peruanita" que se faz passar por chilena, mas que é logo desmascarada e desaparece. Essa paixão, algo destrutiva, algo poética, se prolongará por décadas de encontros e desencontros, onde Ricardo e a "menina má", que muda de nome e de casamento como quem muda de roupa, viverão encontros e desencontros nas cidades mais diferentes, desde a Paris revolucionária dos anos sessenta, passando pela Londres transgressora dos hippies e dos primórdios da Aids dos anos setenta, até o submundo de uma Tóquio instigante, de mafiosos pervertidos e uma vida noturna repleta de surpresas e mistérios. O desafortunado Ricardo, que vê sua auto-estima e sua própria saúde física serem esmigalhadas pelo poder que a paixão pela menina má exerce sobre ele, é uma metáfora bastante representativa dos descaminhos para os quais o amor desgovernado pode nos levar.

* O Lugar de uma Mulher, de Barbara Delinsky (Bertrand Brasil, 1997, 402 págs.) - Apaixonei-me definitivamente pela literatura dessa notável escritora norte-americana de romances sentimentais depois de ler essa história emocionante sobre os conflitos de uma mulher independente e emancipada, às voltas com um ardil armado pelo marido para lhe tomar os filhos e arruinar sua vida. A protagonista, Claire Raphael, é uma bem-sucedida empresária, esposa fiel e mãe dedicada que precisa lutar na justiça para reaver a guarda dos dois filhos pequenos. Para isso tem de enfrentar um judiciário preconceituoso, lento e tendencioso e lidar com a falta de caráter do agora ex-marido, cujo objetivo maior é tirar de Claire uma boa soma em dinheiro e, dessa forma, mitigar sua própria baixa auto-estima, conseqüência de seus fracassos profissionais conjugados com a sua mania de grandeza. No meio desse turbilhão de situações que vira a sua vida de pernas para o ar, Claire redescobre o amor na pessoa de seu sócio e melhor amigo. O livro é espetacular. A cena em que Claire se despede dos filhos na porta de casa é comovente e nos leva às lágrimas. Um romance para se ler num fim de semana prolongado.

* Restou o Cão e outros contos, de Livia Garcia-Roza (Companhia das Letras, 2005, 112 págs.) - Li alguns livros de contos em 2006, todos excelentes, mas se houve um que sobressaísse, este foi, com toda a certeza, Restou o Cão e outros contos, de Livia Garcia-Roza, indubitavelmente uma das grandes escritoras brasileiras em atividade. Psicanalista, Livia parece transportar para as suas histórias todo o amplo caleidoscópio de emoções e sentimentos que povoam a intimidade e o imaginário do ser humano nos dias atuais, notadamente da classe média brasileira. E, com isso, estabelece uma grande cumplicidade com um leitor que, muitas vezes, compartilha dos mesmos conflitos e sensações das suas muito bem construídas personagens. Mestra nos diálogos (como bem salientou Julio Daio Borges, ano passado, em seu "Digestivo nš 218") e dona de um humor sutil, porém, pungente, que se insinua das entrelinhas e nos assalta de repente como um vendaval, Livia vem construindo uma sólida carreira e seus livros são a prova de seu enorme talento e sensibilidade. Em boa parte dos contos de Restou o Cão, o universo infantil predomina e é, talvez, o maior entre todos os atrativos de um livro absolutamente sensacional. A comicidade presente em contos como o interessantíssimo "O Carneirinho" contrasta com a atmosfera perturbadora de "Jason" ou de "Carta para mamãe", onde uma menina escreve uma carta para a mãe internada num hospital - embora até neste haja pitadas de humor, sobretudo quando a narradora, subitamente, decide contar que decorou a bula de um remédio de tanto tempo que ficou escondida num banheiro. O elemento surpresa é uma constante em todos os contos e os pontos de vista, de tão múltiplos, tornam o livro um grande e rico mosaico de vozes distintas e incrivelmente reais. Da autora, eu já havia lido os ótimos Cine Odeon e Meus Queridos Estranhos e, neste momento, estou mergulhado no seu novo trabalho, o recém-lançado romance Meu Marido, que narra os conflitos e contradições de um casal, cuja relação vai, aos poucos, sendo minada pelas pequenezas de um cotidiano louco. Uma leitura, aliás, saborosíssima.

* Um Corpo para o Crime, de Val McDermid (Bertrand Brasil, 2006, 504 págs.) - Um romance policial perturbador e simplesmente brilhante. A história gravita em torno de Scardale, um vilarejo isolado e misterioso do interior da Inglaterra, onde, às vésperas do Natal de 1963, uma jovem de treze anos, Alison Carter, sai para passear com sua cadela e desaparece. Tudo indica que ela foi seqüestrada por um maníaco, violentada e morta. A trama que se desenrola a partir daí transpira tensão por todas as páginas. O suspense psicológico é constante e presente em cada uma das personagens. O ambiente, sombrio e pesado, chega a ser angustiante e, em dados instantes, beira o insuportável. Trata-se, inegavelmente, de uma obra muito bem realizada, mas cuja leitura não é das mais leves, embora não contenha uma única cena mais forte. A autora escreve com elegância e, em nenhum momento, cai na tentação da apelação gratuita. O único problema do livro - se há um - é o excesso de personagens policiais, algo muito comum, aliás, na literatura policial contemporânea. No afã de retratar um distrito policial com fidelidade, os autores acabam criando personagens em excesso e muito parecidos entre si, que gravitam em torno do detetive protagonista, o que pode confundir o leitor em alguns momentos. Nada, no entanto, que comprometa a leitura.

* Shosha, de Isaac Bashevis Singer (Francis, 2005, 300 págs.) - É imperdoável que, somente neste ano, eu tenha descoberto a prosa impressionante de Isaac Bashevis Singer, prêmio Nobel de literatura de 1978. Como pude viver mais de três décadas sem conhecê-lo? Considerado o maior escritor em língua iídiche do século XX, Singer é um exímio narrador da vida e da cultura judaicas na Polônia antes do Holocausto. Em Shosha, ele reconstrói esse universo, retratando a Varsóvia do início dos anos trinta, por meio da história de amor entre o jovem escritor Aaron Greidinger, filho de um rabino hassídico (seguidor de um movimento do judaísmo surgido na primeira metade do século XVIII, inspirado na Cabala), e uma amiga de infância, a tímida Shosha. O livro tem fortes componentes autobiográficos pois, assim como o seu protagonista, Isaac Bashevis Singer era escritor, escrevia em iídiche, era filho de um rabino hassídico e viveu na rua Krochmalna, em Varsóvia, cenário primordial da história. Trata-se de uma obra profunda e rica, que oferece inúmeras possibilidades de interpretação. Alguns leitores poderão identificar na história de amor entre Shosha e Aaron uma metáfora da sobrevivência de valores comuns a toda a humanidade frente a uma sociedade que caminha para o aniquilamento. Outros, por sua vez, talvez a encarem como uma narrativa que se vale de componentes da literatura fantástica para se debruçar sobre uma personagem (Shosha) que não cresce, tanto psíquica quanto fisicamente, numa espécie de analogia com a sociedade da qual ela faz parte, no limiar da Segunda Grande Guerra. O leitor que não se importar com o excesso de referências iídiches - pouco familiares à sociedade brasileira - terão, diante de si, uma grande obra. Em 2007, darei prosseguimento à leitura da obra de Singer e mergulharei nos seus contos que, segundo me recomendaram, são ainda melhores do que suas narrativas longas.

* O Clube Dante, de Matthew Pearl (Francis, 2005, 408 págs.) - Thriller ambientado na Boston da segunda metade do século XIX, O Clube Dante é dos raros trabalhos literários com os quais tive contato recentemente que conseguem aliar uma vibrante trama de mistério com uma prosa de grande erudição. Nesse ponto o livro se assemelha menos a O Código Da Vinci (com o qual ele foi injustamente comparado, a meu ver) e mais com uma obra como O Nome da Rosa. A trama de O Clube Dante, narra uma sucessão de crimes bizarros em Boston, inspirados em passagens do Inferno de A Divina Comédia, na mesma época em que um grupo de intelectuais (que compõem o Clube Dante) está finalizando a primeira tradução americana da obra-prima de Dante Alighieri. Com uma narrativa muito bem elaborada esse thriller prende incrivelmente a atenção e seu único defeito, a meu ver, é similar ao que acomete Um Corpo para o Crime, citado mais acima: há um excesso de personagens muito parecidos, que falam e se comportam de maneiras muito semelhantes - no caso, todos os membros do Clube Dante -, e um leitor mais impaciente poderá ficar enfastiado. Do mesmo modo, é preciso avançar nas primeiras sessenta ou setenta páginas, até o livro, efetivamente, começar a empolgar. Os que superarem essas barreiras serão seqüestrados pela narrativa de Pearl e conduzidos por um labirinto de suspense perturbador. Confesso que não entendo como esse livro, que foi best-seller nos Estados Unidos e na Espanha, não figurou em nenhuma lista de mais vendidos no Brasil.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 12/12/2006

 

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