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Sexta-feira, 3/8/2007
A cidade e as serras
Ana Elisa Ribeiro


Os limites e os contrastes das cidades

Lembro, sem saudade, da adolescência dos anos 80, naquele bairro de classe média baixa, em Belo Horizonte. A capital mineira foi a primeira cidade planejada do país, executada pela Comissão Construtora presidida pelo engenheiro positivista Aarão Reis. Os homens importantes daquela época são hoje nomes de ruas.

Na virada do século XIX, a Cidade de Minas (seu primeiro nome, alterado por votação, depois de muita briga com a antiga capital, Ouro Preto) era símbolo de modernidade, progresso, ousadia e de uma vida republicana recém-conquistada. Mas não tinha nada de democrático. Uma cidade plantada em cima de um arraial, no coração de Minas Gerais, feita de maneira higiênica para abrigar a elite da época e para deixar na periferia os operários que a construíram.

O arraial preexistente se chamava, já, Belo Horizonte. Aos seus habitantes (pouco mais de 2000) era dado o nome de horizontinos. Viviam como uma comunidade rural e tinham laços sociais. Suas terras foram desapropriadas e eles se socorreram de outras localidades, tais como Sabará e Venda Nova (extremo norte de BH, hoje). No lugar das casas da vila foram construídos prédios grandes e robustos, o Palácio da Liberdade (onde fica Aécio, hoje), praças, ruas largas e iluminadas, quarteirões simétricos.

BH era um grande círculo em terras planas, um mapa quadriculado dentro dos limites de uma avenida chamada Contorno. O que estava ali dentro era bairro horizontino. O que estava fora, era periferia. Atualmente, a periferia de antes é também parte central da cidade, que tem outras periferias, bem mais distantes do que as daquela época.

O arraial que se tornou capital ia da Serra do Curral (onde fica o Parque das Mangabeiras) até a região conhecida como Lagoinha. Isso corresponde aos trajetos das avenidas Afonso Pena e Antônio Carlos, na cidade de hoje. Nos inícios do século XX, a artéria de Belo Horizonte era a rua da Bahia, ainda conhecidíssima pelo movimento cultural e pela arquitetura.

Periferia
Nasci na periferia da antiga capital. Já fora da avenida do Contorno, que hoje circunscreve um trecho pequeno da cidade, mas ainda abriga os bairros mais valorizados. Nasci perto da Lagoinha, num bairro chamado Cachoeirinha, onde ficavam as fábricas de tecido da ex-capital. Fábricas chegadas para fazer BH entrar na produção industrial, no capitalismo, na modernidade. Meus avós eram, ambos, técnicos têxteis. Moravam na antiga vila da fábrica, comandados pela sirene que apitava nos três turnos, para indicar as trocas de funcionários. Sabiam tudo sobre tecidos e eram vizinhos, lado a lado (ainda são).

Cada um deles veio de uma cidade do interior, com esposa e filhos, para procurar vida melhor na capital do estado. Aqui os filhos estudaram, aprenderam profissões qualificadas, construíram casas na cidade loteada, criaram filhos, netos e vivem no século XXI.

Na Cachoeirinha não havia ricos. Havia pessoas que trabalhavam muito e que queriam que os filhos estudassem. Na década de 1970, essa segunda geração já havia construído as melhores casas do bairro. Ainda não eram ricos, mas tinham condições melhores do que as dos pais (feito que talvez a terceira geração, da qual faço parte, não consiga repetir).

Estudos
Nos idos de 30-40 do século XX, não era comum que as pessoas da periferia estudassem. Meus avós não têm cursos superiores. Talvez algum deles tenha completado o segundo grau (hoje ensino médio, na época ainda com outros nomes).

Nas décadas de 50-60-70, a geração dos meus pais estudou e progrediu nas excelentes e disputadas escolas públicas da capital mineira. O Colégio Municipal (na Lagoinha), o Colégio Estadual Central (ao Sul) e o Instituto de Educação (no Centro) eram as melhores opções, onde estudaram personalidades da história do estado e do país.

Outras opções eram os colégios religiosos. Talvez o mais tradicional, além do Caraça (fora de BH), fosse o colégio dos padres alemães, o Arnaldo, que também teve alunos conhecidíssimos na administração pública a na literatura.

Do grupo que viveu essa época fazem parte Carlos Drummond de Andrade, Gustavo Capanema, Pedro Nava, Fernando Sabino e outros.

Na década de 80-90, ainda era comum que disputássemos vagas em bons colégios públicos. Minha entrada no Colégio Municipal Marconi, depois de concurso concorrido, foi festejada pela família. Pagar impostos tinha compensação perceptível.

Não sei o que será dos estudos da quarta geração. Lastimo muito que talvez não sejam públicos e que meus impostos façam trajetos menos visíveis.

Cachoeirinha
O Clube da Esquina se encontrava em Santa Tereza. A Floresta era um point. Fernando Brant ainda mora na Cachoeirinha, que mantém ares de cidade do interior. Meus avós fizeram reformas nas casas da vila da fábrica e as descaracterizaram. A fábrica quebrou e a sirena parou de tocar. As casas supermodernas construídas pela segunda geração já têm mais de 30 anos, os vasos sanitários são marrons ou verdes, há lodo nos telhados e os azulejos estão fora de moda. Ninguém mais faz o piso de taco.

A esquina onde passei a adolescência, entre Marieta Machado, Indianópolis (assim mesmo, com ó) e Cônego Santana, hoje tem cercas elétricas e muros altos. As pessoas continuam não sendo ricas, não fazem turismo pela Europa e nem têm seguros de vida. O que ainda há de bom é que abriram ali uma padaria e alguns ainda se sentam em cadeiras de balanço nos alpendres ao entardecer.

Simplicidade
Não éramos ricos, mas não éramos bobos. Todos temos vidas dignas hoje em dia. A maioria de nós se casou e mora nos arredores. Uma está em Portugal, fazendo o doutorado em História. Há casos de separação, vários temos filhos, um morreu assassinado.

Nossos pais estão vivos. Alguns doentes, outros continuam nas mesmas esquinas, nos mesmos horários. E compram pão na nova padaria da esquina.

Minha adolescência era de rua, de chinelo, de bicicleta, de pequenas e impacientes sessões de Atari, de bola e de pique-esconde nos prédios em construção. Namoricos, danceterias no bairro ao lado, figurinha, baralho, música house. Não fui ao show do Technotronic. Nem ao do New Order. Meu primeiro namorado foi do bairro, andávamos de bicicleta juntos e os pais dele eram amigos dos meus pais.

Havia competições promovidas por estações de rádio. Eram grandes gincanas com equipes formadas por bairros. A nossa era a "Speed Angels", assim, com nomes em inglês. E éramos muito pirralhos para participar efetivamente. Ficávamos admirando os carros adesivados, as camisas silcadas, a energia dos campeões. E achávamos bonitas as camisas das equipes adversárias, especialmente os "Forest Crazy".

Apenas uma de minhas amigas usava roupas de marca. E eu achava uma coisa besta. Ela comprava mais caro o que eu comprava mais barato. E enquanto eu vivia discretamente, ela fazia propaganda de graça para uma marca qualquer. Camiseta e mídia. Forum, Vide Bula e uns nomes engraçados: Formiga Urbana, Rato de Praia e Ocean Pacific. Mineiros com trauma porque não têm praia. Nos pés, usava Redley e All Star, de cano longo. As calças eram largas nas coxas e estreitas nas canelas. O cós era quase no umbigo. Suspensórios estavam na moda. Coisa mais engraçada.

Até hoje, a primeira coisa que eu faço quando compro uma bolsa, uma roupa, um sapato até, é arrancar-lhes as etiquetas. Tenho aqui um estilete para tirar as tiras de pano ou couro que selam as calças jeans e para cortar etiquetas internas que me fazem cócegas. Não é engraçado?

Vida cultural
A cidade demorou a ter alguma vida cultural. Nos primeiros 30 anos de Belo Horizonte capital, alguns cinemas conseguiram tirar as pessoas de casa e fazê-las passear pelas ruas, flertar e conversar. As matinês e as soirées chics eram o máximo de agitação, que os jornais cobriam como se inaugurassem cadernos de cultura.

Nos anos 80-90, a vida cultural da cidade era plena, embora a cultura dos botecos ainda seja a mais disseminada. As contas de bar (em cerveja) dão para comprar vários livros e revistas. Questão de prioridade.

No século XXI, os cinemas quase se acabaram e novas salas foram inauguradas dentro dos shoppings. Restam os cinemas ditos cult, que ainda são térreos, em galerias onde se encontram, além das salas de projeção, livrarias, cafés e charutarias.

Fascina muito, ao menos a mim, observar as apropriações que se fizeram dos espaços da cidade. Os trajetos dos belo-horizontinos, assim, com hífen.

Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 3/8/2007

 

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