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Quarta-feira, 31/1/2007
Dentro do Tom
Guga Schultze

Ouvindo o Tom

Direi do Tom que ele era o homem carioca, andando nas ruas, no meio de Ipanema. Os dois, ele e aquelas ruas, estão intimamente ligados e de tal forma que seu fantasma percorre a cidade, a zona sul do Rio, sem nunca dar trégua a nenhum dos outros músicos coadjuvantes.

Ele e Vinícius disseram que não faziam música de elite mas, assim como podemos tirar alguém da ralé mas não se pode tirar a ralé de alguém, da mesma forma, Jobim não conseguiu, não quis, não tentou extirpar a sofisticação natural - a música dele está cheia de vazio, de alturas que vão cobrindo a extensão das planícies rasteiras em que nós, os filhos do sertanejo, os dois filhos de Francisco, os filhos da rapadura com farinha, não sabemos de nada.

Buscamos Jobim no que ele tem de popularesco, midiático, no bom humor e nas tiradas simples, naquela afabilidade que foi gravada em vídeos, nos sorrisos, nas conversas e parcerias com pessoas malandras de vários pontos e geografias desse país amedrontador. Buscamos seu lado caboclo e o encontramos de sandálias e bermudas, sentado na cadeira de palha, chapéu panamá, balançando numa rede; perdoamos seu charuto (pelo menos deve ser cubano) e fazemos vista grossa ao copo com uísque importado. Focalizamos sua cordialidade sem exageros, típica de uma geração que cresceu num outro Rio, de latitude e longitude perdidas e num outro tempo, cujos remanescentes se vão, um a um, como os últimos grãos de areia de uma ampulheta tombada. Nós o achamos assim, na tela da TV, um homem brasileiro e quase comum; e não nos enganamos de todo.

Mas como deviam ser solitárias suas mãos sobre o piano, trabalhando suas construções musicais, sua arquitetura de elegância extrema em contraponto com a paisagem do batuque na cozinha, sinhá não quer, ou dos ritmos infanto-juvenis do novo rock brasileiro. É muito: a sua sólida e vertiginosa arquitetura, onde o espaço é amplo o suficiente para abrigar a nós e outros povos que ali entram em silêncio reverente porque ouvem o som que é mais claro que um sino de catedral, um som de ecos, eólico, o modo pentatônico escorado por uma sólida e imensa estrutura harmônica que embasbacou outros ouvidos afinados.

Stan Getz: "Tom is one of the three greatest composers of this century."
O século ainda era o XX mas Stan Getz foi modesto e o século XX, no Brasil, começou nos anos cinqüenta. No vídeo, Tom afunda na poltrona e puxa o chapéu sobre os olhos. Aceita, resignado, o elogio que lhe caiu no colo e que veio, inesperadamente, num reconhecimento meio tardio, de um outro país que não o seu.

O fenômeno musical em Jobim se revela para qualquer musicólogo ou para um ouvinte atento: Tom é um mestre absoluto em harmonia. Isso significa uma sabedoria - às vezes absurda em sua beleza - na construção e no encadeamento dos acordes. São aqueles acordes que sustentam, muitas vezes, as melodias mais singelas que um compositor de porte poderia criar.

Tom costumava manter suas melodias numa amplitude reduzida, um mínimo de notas, sem arabescos ou volteios desnecessários, limpando e polindo ao máximo os eventuais floreios e disso resulta uma frase melódica direta, clara, simples mas, às vezes, enganosamente simples.

Esse poderia ser considerado o lado mais popular de sua composição: melodias fáceis e facilmente assimiláveis, ainda que sofisticadas em si mesmas. Mas do outro lado da moeda Tom grava sua efígie particular, única, a marca do seu gênio musical. Para aquelas melodias Tom desenvolve uma harmonia irretocável. A elegância chega ao seu auge, não há ornamentos ou excessos de nenhuma ordem, a sofisticação às vezes é quase inconcebível; não há hesitação; há sim uma profundidade maciça e uma inteligência musical que se impõe a cada movimento.

Em 1967 Chico Buarque compôs "Roda Viva", uma canção excelente como tantas outras do Chico. Em 85 Tom compôs "Passarim". Quero ilustrar algo a respeito da música de Jobim e vou usar essas duas canções porque começam quase que da mesma forma. A relação das notas iniciais é a mesma, ou seja, se cantadas no mesmo tom são facilmente confundidas. Poderia tentar mostrar as duas partituras e discutir os intervalos, mas posso fazer minha demonstração de uma maneira mais fácil: usando as letras das canções como recurso para lembrar apenas a melodia e a harmonia, que é o que interessa.

"Roda Viva" começa assim:

"Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá...
"

"Passarim":

"Passarim quis pousar, não deu, voou
Porque o tiro partiu mas não pegou
Passarinho me conta, então me diz
Por que que eu também não fui feliz
Me diz o que eu faço da paixão
Que me devora o coração
Que me devora o coração
Que me maltrata o coração
Que me maltrata o coração...
"

As duas primeiras linhas de cada canção são melodias quase idênticas. A partir da terceira linha de "Roda Viva" já sentimos o clima da canção em sua totalidade, intuímos onde ela vai chegar ou já percebemos o espaço que ela ocupa. Tirando o fato dela ser uma excelente canção, não há maiores novidades e sabemos mais ou menos o que esperar. A canção decola, ganha sua altura de cruzeiro e vai assim até o final. Sob muitos aspectos (e ainda que seja uma ótima canção) é um tratamento convencional de melodia e harmonia.

"Passarim" usa as mesmas notas até a segunda linha, no entanto já existe uma tensão, inequívoca, presente no movimento descendente de acordes ao fundo. A terceira linha repete o mesmo movimento até que a melodia se liberta subitamente nas duas últimas sílabas - "...me diz.." - alçando de repente um vôo inesperado e se mantendo além do previsível, acima da expectativa anteriormente gerada, acima de qualquer lugar comum, impulsionada no ar por uma estrutura harmônica de beleza ímpar.

Jobim era canhoto e eu especulo, meio forçadamente, sobre a possível influencia disso na sua música. Explico: o lado esquerdo do teclado, no piano, é tradicionalmente associado à seção harmônica da peça executada. A mão esquerda de Jobim ao piano era surpreendente, não em termos de virtuosidade ou algo assim mas na criação da tessitura harmônica. O "Samba de uma nota só" é um exemplo famoso de economia melódica versus desenvolvimento harmônico. Ficou famoso seu "piano de três dedos", um piano de "poucas" notas mas que provocava silêncio em outros músicos que estivessem por perto, que se calavam para ouvir.

Jobim fez parte da Bossa Nova. Ou a Bossa Nova fez parte de Jobim. Ambas as frases são corretas. No entanto a associação de seu nome com o movimento vai perdendo significado na medida em que sua obra ultrapassa os limites do que a Bossa Nova pode abarcar. (Alguns nomes da época também sofrem esse processo, de uma maneira ou de outra, enquanto outros serão para sempre historicamente datados).

Tenho um vídeo memorável de Chet Baker tocando "Retrato em branco e preto". Chet, músico de elegância e bom gosto extremo e cuja vida turbulenta era o oposto da serenidade mostrada ao trompete, não gostava de percussão, bateria ou marcação de ritmo. No vídeo ele está acompanhado apenas de contrabaixo e guitarra; sente-se confortável assim para dar sua versão da música de Jobim e o silêncio naquele clube de jazz atesta o que Chet já sabia - aquela música é feita apenas de harmonia, melodia e silêncio.

Tom era também um bom letrista e teve vários parceiros nessa área. Mas eu prefiro o Tom instrumental e sua melhor música sempre está além das melhores letras. Penso até que as letras, as palavras, reduzem o que era para ser entendido com a outra linguagem, a da música. Peças como "Olha, Maria" ou "Retrato em branco e preto" não precisam de palavras para intensificar o que já é intenso por natureza.

"O meu pai era paulista
Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro
"
(Chico Buarque)

O próprio Chico, letrista inigualável e provavelmente o melhor entre os vários parceiros, disse que a música de Jobim é "toda voltada pra dentro". Dentro do Tom e dentro do mundo que, sem ele, está fora de tom, acho eu.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 31/1/2007

 

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