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Sexta-feira, 26/1/2007
Nhô Guimarães
Rafael Rodrigues

" - Nhô Guimarães, um homem de seu quilate não morre... (...) - Fica encantado!"

Concebido como forma de homenagear os 50 anos de publicação de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, Nhô Guimarães (Bertrand Brasil, 2006, 176 págs., com ilustrações de Juraci Dórea) é um romance completo e independente, pois transcende a homenagem e ganha vida própria.

Nhô Guimarães conta a história de uma personagem que é uma contadora de histórias. Uma mulher simples, do interior, que conta as histórias que viveu - ou ouviu de alguém - para quem levantar as orelhas e fazer silêncio para ouvir.

Ela, uma octogenária muito astuta e vivida, se define: "O senhor veja: estou na casa dos oitenta. Nessa idade, vou vivendo, sem passar precisão. Nas terras ao redor, pouquinhas, porém dadivosas, planto e colho de um tudo o pouco que preciso para o meu sustento. (...) O senhor veja: sou uma velha arrumada, vivo em paz no meu sossego. Sei me cuidar."

Tudo começa quando, confundido com um certo Nhô Guimarães, o tal "senhor" pára para ouvir as histórias da tão hospitaleira e animada octogenária.

" - Nhô Guimarães, o senhor por aqui? Há quanto tempo! Ah, não. Nsh, nsh! Não é ele, não. Mas, quem é o senhor? Apeie, chegue à frente, a casa é nossa. Entre, que lhe dou uns goles de água fresca. (...) Estes caminhos andam numa poeira danada, essa secura, sem chuvas. Isto é o sertão."

E ele ouve. Várias histórias. Algumas tristes, como "A vingança de Nenzinho". Nenzinho, quando "nem homem feito era ainda", foi humilhado publicamente por Zé de Zabé, que o fez beijar o chão e "a dizer de si mesmo tudo coisa quanto não prestasse". Anos depois, Nenzinho, já homem feito e forte, e Zé de Zabé, já casado e com filhos, tiveram seu acerto de contas. Nenzinho nem precisou fazer nada. Tudo o que fez foi assistir a agonia de Zé de Zabé, que depois desse trágico dia, ficou sozinho no mundo. Outras redentoras, como "Um pai desnaturado", que poderia se chamar "O pai pródigo". Nela, um pai rejeita o filho recém-nascido e a mãe cria o menino sozinha. Com o passar dos anos o menino, já homem, prospera nos negócios. Já o pai desnaturado, vai à ruína. Certo dia, o velho, já nas ruas, apelando para a mendicância, tromba com o filho e, sentindo-se humilhado, lhe pede perdão. O rapaz, que poderia vingar-se do pai naquele momento, opta pelo bom-samaritanismo. Perdoa o pai e o acolhe em seu lar.

Há também histórias de amor, mas a maior delas é mesmo a da personagem com Manu, Manuel Adeodato, seu marido falecido, que ela cita várias vezes, e que era amigo de Nhô Guimarães. Com Manu, como ela carinhosamente se refere ao marido, ela teve um filho, que mudou-se para a cidade ainda jovem e depois de algum tempo não mais mandou notícias.

O romance é dividido em 36 capítulos e, apesar de haver um "causo" em cada um deles (a exceção do primeiro e último capítulos), há uma ligação entre todos. Essa liga, esse laço, é justamente a amizade da personagem e do seu falecido marido com Nhô Guimarães e a esperança que ela tem de ainda poder encontrar, ao menos uma última vez, com Nhô Guimarães e com o filho que se perdera na cidade.

Um dos grandes êxitos de Aleilton Fonseca - que não é nenhum novato em nossa literatura, muito pelo contrário; Aleilton é doutor em literatura pela USP, professor de literatura da UEFS e tem vários livros de poesias e contos publicados - com o seu Nhô Guimarães talvez seja o de conseguir colocar, sutilmente, nas histórias da octogenária, algumas críticas à nossa realidade.

"Todo mês vou à cidade. Retiro meu dinheiro na Caixa. Ah, eu sou aposentada, o senhor sabe? O valor é uma sem-vergonhice de tão pouco, a gente precisa exigir mais respeito."

E mais:

"Eu, o que queria mesmo, um dia desses, era ser candidata. Isso se tivesse idade menos. Mas qual, estou de pilhéria com o senhor! Até hoje voto, escolho, recomendo. O tempo que passa só traz melhoras. Com paciência e trabalho as coisas mudam. Mesmo devagar, vai tudo de mudança. Nhô Pompilo mandava e desmandava nestas bandas, desde rapaz até a velhice. Os filhos dele mandavam menos. Os netos não mandam mais."

Nhô Guimarães é, ao mesmo tempo, uma coleção de histórias e um romance, que tem sua verdadeira história aos poucos desfiada, sob as histórias contadas pela octogenária. Uma verdadeira aula de como se escrever uma boa história (o romance) e de como se escrever várias boas histórias (os "causos" que compõem o romance). E a personagem dá a dica:

"Quem proseia precisa imaginar, palavrear, distrair o parceiro. Isso é certo, as novidades boas e compridas. A verdade é só um começo. O melhor mesmo da história é o capricho da prosa." Capricho esse que Aleilton tem de sobra. Fiz a leitura de Nhô Guimarães com tanto gosto que perdia a noção das horas. E mesmo que estivesse com o horário apertado, sempre pensava "vou ler só mais um 'causo' e já vou".

Ah, e pra terminar: o "senhor" que ouve calado e atentamente as histórias da personagem, tem sua identidade mantida em segredo até o fim do livro, quando o leitor decide finalmente quem ele é, as lágrimas rolam e a "história acaba e começa".

Para ir além





Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 26/1/2007

 

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