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Segunda-feira, 5/3/2007
Um olhar desafiador
Vicente Escudero

Entrava no estúdio, cumprimentava a equipe e caminhava até a pequena sala de gravação. Tirava do bolso do paletó um pequeno papel com algumas anotações, lia com atenção uma ou duas vezes e caminhava para a frente da câmera. O operador perguntava:

- O que vai ser hoje, Francis?
- Cobertura das prévias dos democratas.
- Certo! Avise-me quando estiver pronto.
Empurrava o nó da gravata para cima levemente, apontava para os telespectadores os óculos com lentes grossas, após guardar as anotações.

- Pronto.
- Ok, Francis. Gravando...

E libertava a voz grave de crooner:

- Sumertiiiiime...

Assim conheci Paulo Francis. Entre o jantar e o descanso noturno ele entrava com toda sua fleuma na tela da televisão para comentar aquilo que acreditava ser relevante. O aparelho ficava pequeno com tamanha verborragia cheia de idéias e seus trinta segundos acabavam sendo mais úteis e agradáveis do que todo o resto da programação.

Jornalista, crítico e romancista, Francis viveu as próprias idéias e experiências como nenhum outro intelectual brasileiro do século que acabou de passar. Pertenceu a uma classe de jornalistas preocupada com a sofisticação do conteúdo, ao invés de seguir a tendência, hoje quase consolidada, de pasteurização das informações transmitidas pela imprensa, especialmente a cultural.

Foi um personagem controverso e contundente neste cenário. Começou como ator em uma companhia de teatro amador, passando a atuar como diretor e depois crítico. Feroz em seus comentários, dotado de um vasto conhecimento geral e sobre o tablado, seguiu por diversas vezes a linha da ironia socrática e também do crítico americano Saul Bellow, modernizando a linguagem adotada pelos críticos nacionais da época. Afastou os eufemismos para transmitir sua opinião de forma direta e clara, algumas vezes exagerando, partindo até para ataques pessoais, como no infame caso da crítica à atriz Tônia Carrero.

Sua crítica teatral foi engajada. Daí para comentarista político foi um pulo. Passou ainda pelo saudoso O Pasquim e alcançou o reconhecimento do público comum na sua coluna Diário da Corte, inicialmente publicada no jornal Folha de S. Paulo e depois em O Estado de S. Paulo.

Os dois romances que escreveu não foram bem recebidos pela crítica literária do final da década de 70, início de 80. Cabeça de papel (1977) e Cabeça de negro (1979) foram críticas ferozes à sociedade brasileira. Sua linguagem coloquial, recheada de citações e passagens vulgares não foi compreendida como um retrato fiel da elite que comandava o país antes do golpe militar. Os cânones preferiram tratar sua técnica como uma diminuição das idéias apresentadas, mesmo com as idéias do primeiro romance alcançando a condição de profecias realizadas. O segundo romance, Cabeça de negro, continuação do primeiro e contando ainda com o alter ego Hugo Mann, foi mais thriller do que crítica, mas teve o mesmo destino: razoável sucesso de público, ocasionado mais pelo reconhecimento de Francis angariado na mídia do que pela recepção da crítica especializada.

As duas novelas contidas em Filhas do segundo sexo (1982) marcaram o fracasso de sua tentativa de sobreviver apenas como escritor, deixando de lado o jornalismo. Francis manteve-se em pé e encarou corajosamente o trabalho na televisão, mesmo sendo contrário à massificação cultural, crescente na época. Suas participações no Manhattan Connection, transmitido na televisão a cabo, e nos jornais da Rede Globo o tornaram inesquecível.

As idéias de Francis me fascinavam. A maior parte do conteúdo que transmitia era atraente e, com a dose de sarcasmo implacável, passava a ser irresistível. Eu poderia aprender algo de duas formas, nos meados de 1990: sentando na cadeira da escola e assistindo a maioria das aulas enfadonhas ou pescando no jornal indicações de livros, teatro e cinema. A segunda opção venceu. Francis venceu. O autodidata pronto para questionar tudo e todos em qualquer ocasião.

Não conheci Francis pessoalmente, mas pela câmera de Bob Wolfenson pude vê-lo em suas duas formas preferidas: como contestador, em um olhar perfurante que se multiplicava pelas lentes grossas dos óculos, arrumados vagarosamente como se estivesse aguardando para transformar em pó, com seus argumentos, quem estivesse do outro lado da câmera e como Rei da Corte, pronto para criticar o marxismo abandonado e cantarolar uma canção qualquer. Diversas vezes imaginei ele repetindo Herzog, de Saul Bellow:

- Estou bem, se estou sem juízo.

Não tem significado. Foi dicionário, contendo "cada palavra com léguas de explicações e usagens" sem expressar "eruditismo hermético". Chacoalhou a inércia.

Fecham-se as cortinas.

Ecoam suas idéias.

Vicente Escudero
São Paulo, 5/3/2007

 

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