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Sexta-feira, 9/3/2007
Uma década no rastro de Paulo Francis
Julio Daio Borges

* Fiquei procurando motivos para escrever sobre os dez anos da morte de Paulo Francis... Não encontrei nenhum. Apenas achei que a data não poderia passar em branco. Como no caso de Tom Jobim, nenhuma conclusão totalmente nova; então não escrevo na forma de artigo (com alguma argumentação), escrevo em forma de apontamentos soltos... Difícil é "lembrar" alguém que sempre esteve presente; que nunca, de fato, se foi... O Francis — e tomo, aqui, a liberdade de chamá-lo assim — está na origem de tudo. No Digestivo, no início, todos queríamos ser "cultos" como ele — não importando os meios, apenas era o nosso maior objetivo... É, a meu ver, o melhor legado do Francis: essa "inspiração" que ele deixou... Descobri e sempre descubro (claro) inúmeras falhas no que ele publicou — mas ele teimosamente fica, como um ídolo de juventude... "Vocês idolatram muito o Francis aí em São Paulo" — me provocou, certa vez, o Ruy Castro... É; idolatramos. Que bom.

* Em 1997, quando soube da morte do Francis, não chorei na hora, chorei depois. Tirando o Tom Jobim, eu nunca tinha chorado por uma personalidade pública antes. Nem chorei por nenhuma outra depois... O Francis era um amigo, que vinha conversar comigo, às quintas e aos domingos, através da sua coluna, no Estadão. E, no Manhattan Connection, era nossa diversão de domingo à noite. Na faculdade, comentávamos sua performance durante a semana... Na sua coluna, eu pulava sempre a parte de "política" e "economia" — que não me interessava(m). Quando lia a parte de "cultura" — não consigo encontrar uma metáfora melhor — era como se alguém soprasse oxigênio para eu respirar mais um pouco... Me preenchia os pulmões até a próxima coluna... Nunca um jornalista me causara essa sensação; nenhum outro me causaria depois... Quando o Francis me era mais vital, ironicamente, ele se foi... Estes dez anos, até aqui, podem ser encarados como uma tentativa de prolongar aquela sensação de ler os trechos "culturais" do Diário da Corte... E de preservar aquela atmosfera perdida que "emanava" do mundo do Francis.

* Eu estava indignado com a morte do Francis em 1997 — como iria viver agora? — e meu único ponto de contato com o morto era um jornalista jovem que eu lia nas folgas do meu estágio, que publicava semanalmente uma coluna na Gazeta Mercantil e que organizara o último livro do Francis (Waaal), que eu lera sem parar até acabar (não parava nem para o almoço...). Tenho o fax enviado ao Daniel Piza guardado em algum lugar; mas não senti necessidade de relê-lo agora (nem sei se vale o trabalho da busca... acabei de lembrar que já está no ar). O "Daniel T Piza" (Daniel de Toledo Piza) me respondeu por e-mail — foi o primeiro e-mail "célebre" que eu recebi. Um choque. E me senti na obrigação de continuar aquele diálogo. (Continua até hoje...) O Daniel Piza não me parecia tão indignado com a morte do Francis. "Francis foi um grande jornalista", na sua economia, pontuou. Passei a comentar, religiosamente, as colunas do Daniel (a Sinopse). Comprei o livro que ele também organizou, com escritos do Bernard Shaw, e tentei produzir a partir dali uma "impressão". Foi uma espécie de resenha, acho. Não sabia nem que palavras usar... Dei para a minha namorada da época ler antes de enviar. O Daniel? Penso que gostou porque, de certa forma, me estimulou a continuar com aquele negócio...

* Mas uma das minhas maiores emoções — como fã do Francis — foi receber, anos depois, o arquivo do livro que o Daniel iria publicar, perfilando o Francis, para a coleção da Relume Dumará. O Digestivo tinha servido para alguma coisa, afinal o Daniel Piza queria a minha opinião. Imprimi e li numa noite — como li em poucas horas outros livros do Daniel (por exemplo, o Jornalismo Cultural, em que ele cita, pela primeira vez, entre capas, o Digestivo...). Dei três sugestões ao manuscrito. Lembro de duas. (Esse e-mail, também, deve estar em algum lugar...) Uma era a de que o Daniel precisaria falar mais de como o Francis serviu de inspiração para tantos jovens segui-lo na profissão... E outra se referia ao Francis ter elevado o patamar de remuneração dos jornalistas em geral. (Ah, a terceira sugestão acho que tinha a ver com o romance inacabado do Francis [que a Sonia lança agora...]). O Daniel Piza acatou as duas primeiras sugestões e essa foi a minha "contribuição" para a "biografia" do Francis (que eu resenhei, minuciosamente, depois... — e essa resenha, enfim, satisfez o Daniel).

* Quando fui na casa do Ruy Castro, entre uma coisa e outra (entre o fax e o perfil do Daniel Piza, quero dizer), ele ficou me gozando o tempo todo: "Senta aí, esse sofá foi o último lugar em que Paulo Francis sentou quando veio aqui". O Ruy tira sarro mas faz, na minha avaliação, a melhor imitação do Francis. Me contou de saídas, com o Francis, em Nova York — e das subseqüentes broncas da Sonia. Que, em Portugal, o mesmo Ruy pedia à sua filha pequena que não fosse perturbar "um [certo] amigo do papai". Mas que, de repente, ela despencava no colo do Francis e ele, docemente, brincava com a criança. Satisfazendo a curiosidade de nove entre dez entusiastas — que torcem por uma biografia alentada do Francis —, o Ruy já me disse, há anos, que não faz, porque acha que não rende... Que o Francis não teve uma vida lá muito movimentada. O Daniel, também, concorda — por isso, preferiu o "perfil", o "recorte". Quando o Ruy me passou o pito de que, em São Paulo, idolatrávamos muito o Francis, ele completou: "Existem outros". Não duvido, Ruy, mas, desde o Francis, não vi ninguém ocupando uma página inteira de jornal duas vezes por semana...

* O Sérgio Augusto, sempre muito elegante, me falou que também pulava a parte de "política" dos últimos Diários da Corte — mas porque não concordava, porque não acreditava na (e, portanto, porque nunca aceitou a) virada política do Francis. Parecia "embriaguez" do Francis. Um amigo contou que avisava sempre o Millôr: "Olha que o Francis vai pra Globo" — e o Millôr nunca acreditava. Um dia, ele, Francis, foi. Outro amigo recordava, entre gargalhadas, quando o Francis chamou, no Pasquim, Roberto Marinho de "o homem-porcaria" (ou algo assim). Depois, quando o Roberto Marinho morreu, escreveram, na Época, que ele quis passar alguns momentos com o cadáver do Francis. "Era um rapaz muito jovem", parece que teria comentado. Eu não gosto da Globo (será que já deu pra perceber?), mas reconheço — como o Nélson Rodrigues reconheceu a vida toda — que o Roberto Marinho ajudou muita gente, inclusive o Francis. E não acredito, claro, que a guinada política do Francis fosse bravata profissional. Não gosto dos imitadores (ou "discípulos") do Francis falando sobre política — porque eles, sim, blefam bastante —, e não acho que o Francis entendesse alguma coisa de economia, mas no Waaal, no que concerne a esses assuntos, não encontro nenhum grande furo.

* A Sonia, muito generosamente, me disse, quando começou a colaborar com o Digestivo, em 2003, que o Francis teria feito a mesma coisa... Às vezes me pergunto — mas não muito — o que ele iria achar da internet e de tudo o que andamos fazendo, aqui, "em seu nome"... Algo me diz que ele iria descer o pau... Como a Flávia Rocha — em sua Entrevista ao Digestivo — que soltou uma frase que caberia, perfeitamente, na boca do Francis: "A internet democratiza o conhecimento — e a idiotice —, há lugar para tudo". Quando encontrei a Sonia, não fiquei naquele papo chato de fã. Ela me contava, espontaneamente, alguns casos do Francis. Que ele a acompanhou, contrariado, a um retiro espiritual, levando "os livros mais céticos" da sua biblioteca. Passava as horas lendo e, quando chegava ao fim do dia, não agüentava mais ouvir os mantras... Na volta, no carro alugado: "Nenhuma palavra!" — gargalhava, sozinha, a Sonia... Segundo ela, ele, escrevendo, era "alemão" — sentava todo dia no computador... "O Francis era um espírito muito antigo", num momento mais sensível, Sonia me revelou.

* Quando conversei com o Diogo Mainardi, senti que tinha chegado a todo mundo que fora mais próximo do Francis. (O Wagner Carelli não me causou essa sensação porque eu só soube depois que ele era também amigo do Francis; e, com o Millôr, praticamente não falei sobre o Francis...) O Diogo me pareceu tão despreocupado com tudo... que me assustou: "Literatura já era; cinema já era também". Ele, que tinha sido um modelo de escritor jovem para nós — infantes admiradores até dos "seguidores" de Francis —, de repente atirava pela janela todos os nossos sonhos... Não importava mais, parecia nos dizer o Diogo. Com a morte do Francis, "the dream was over". O Diogo Mainardi quase falava com todas as letras, mas — pensando bem — outros me passaram, em maior ou menor grau, a mesma impressão: "Esse negócio de 'jornalismo cultural', Julio, isso era só na cabeça do Francis..." — suas atitudes, mais ou menos blasé (em relação à profissão), pareciam denotar... Cobrei sempre do Daniel que ele fosse mais ousado, no jornal, em relação aos novos autores; esperei, ansiosamente, que o S.A. se tornasse editor d'OPasquimXXI; e perguntei por telefone, ao Ruy, porque não havia mais jornalistas como o Francis, que tomavam iniciativas (e não ficavam só falando)...

* Se o Francis tivesse sobrevivido àquele infarto fatal, em fevereiro de 1997, eu veria um monte de defeitos nele hoje — como vejo nos outros... E a gente provavelmente não sobreviveria à crítica mordaz do Francis; e ele, por sua vez, não sobreviveria à nossa... Na falta do Francis original, sobra a idealização... Eu sempre vi no Francis um pouco do empreendedor que foi o editor da revista Senhor, que montou depois a redação da Diner's, que fundou o Pasquim, que inventou aqueles comentários no Jornal da Globo, que arriscou no Manhattan Connection, na revista República... Acho, particularmente, que o Paulo Francis não está tanto nos escritos dele — digo, no "conteúdo" —, mas está mais na "atitude", na forma... Ele viveu perigosamente até o fim, como dizem, fulminado por um processo de 100 milhões de dólares da Petrobrás. "Se não morresse, teriam matado", como dizia a minha Vó (sobre um tio brigão que morreu num acidente de carro). Paulo Francis não sabia viver de outra forma. Talvez não gostasse da internet, que não era "a sua praia", mas sentiria o mesmo nojo que sentimos do jornalismo acomodado dos últimos dez anos.

* Reli o Waaal, buscando inspiração para este texto. E anotei algumas coisas (vocês já conhecem, possivelmente, todas...). O Francis falando, quase sempre, é melhor do que a gente falando do Francis... "Gosto que me leiam e saibam o que acho das coisas". "Bebi muitos anos. Para ficar bêbado. Não posso imaginar outra razão". "A maioria das pessoas que conheço não vai mais a cinema há muito tempo". "A cultura é, na sua criação, um ato de arrogância e violência. Sempre". "A juventude de hoje pensa que inventou alguma coisa. E inventou. Alardear o que faz. Só". "A era da sociedade de informação resultou no seu preciso oposto. A babel, o desentendimento completo, radical, incurável". "Em crises escrevo três, quatro ou até cinco artigos no mesmo dia". "O esporte é a alta cultura dos sem imaginação, que são três quartos da humanidade". "Sempre que me dá um banzo de voltar ao Brasil leio jornais e revistas e o banzo desaparece".

Julio Daio Borges
São Paulo, 9/3/2007

 

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