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Quinta-feira, 8/3/2007
Mais um texto sobre Francis
Eduardo Mineo

A pior parte de se escrever sobre Paulo Francis é escrever algo que já não tenha sido escrito sobre Paulo Francis. E escrito de uma forma muito melhor do que eu conseguiria escrever, provavelmente. Porém, de qualquer forma, imagino que não seja um grande problema publicar mais um texto relembrando a falta de Francis como escritor, como jornalista, como referência cultural, os maltratos que recebia destes pobres bárbaros tropicais, estes representantes do pensamento rústico brasileiro que ainda encaram o chuveiro como alguma imposição do american way of life etc., um texto, enfim, relembrando a importância de Paulo Francis para todos nós.

Antes de mais nada preciso dizer - e talvez eu seja melodramático demais dizendo; controlem-se, por favor -, mas leio Francis e tenho acessos megalomaníacos de querer salvar o mundo. Tudo bem, não o mundo, mas pelo menos o Brasil, a literatura brasileira, o jornalismo brasileiro. Óbvio, cruz credo trabalhar para um jornal ou para uma editora, mas lendo Francis eu crio este vigor de querer melhorar tudo, de conhecer tudo, de ler, de ouvir e de escrever sobre tudo. Francis não foi apenas uma referência cultural, mas um instigador de cultura. Provocava e esnobava insistentemente até seu leitor se irritar às lágrimas e ir furioso até uma livraria para saber quem diabos era este tal de Scott Fitzgerald, ou Dostoievski, ou Flaubert, ou Camus, ou Tolstoi, ou Proust, ou Kant para ficar em alguns dos nomes que sublinhei em apenas um de seus livros, o Trinta anos esta noite. E o simples fato de decorá-los já significa adquirir uma cultura fantástica para o padrão brasileiro.

Digo fantástica para o padrão brasileiro porque é ridícula a nossa formação. Isto mesmo em colégios caríssimos, o que deixa claro que não se trata de um problema meramente econômico ou social. E nas universidades o quadro é exatamente o mesmo. Duvido que eu tenha muitos colegas na USP com uma média de leitura maior que a minha, de quinze livros por ano. Eu achava que era uma média razoável até ler Jorge Luis Borges dizendo que passou a vida inteira com uma média de cem livros por ano. Senti vergonha porque já é fisicamente impossível alcançá-lo. Talvez esta comparação seja individual demais para aplicá-la ao país inteiro, entretanto, em pesquisas de leitura anual per capita, o Brasil sempre teve resultados variando entre 1 e 2 enquanto alguns países europeus chegavam a 25 livros. E se o resultado brasileiro é ruim mesmo com pessoas que, como eu, foram influenciadas por Francis e engordam estes números, imagine sem Francis.

Além do mais, os livros do Francis são uma graça. Não comento suas colunas porque naquela época eu ainda me interessava apenas por coisas que soltavam raiozinhos e poderes e ainda me irrito às vezes por não ter nascido uns vinte anos antes. Do seu trabalho em jornal tenho apenas três exemplares d'O Pasquim e uma coleção de correspondências também para O Pasquim chamada Paulo Francis nu e cru que me deu uma das melhores experiências em leitura e que é encontrada a míseros quinze reais em sebos no centro de São Paulo. Toda vez que vejo um livro como este sendo vendido a um preço tão baixo fico com vontade de pagar o triplo, o quíntuplo porque ninguém tem o direito de vender este tipo de coisa a este preço. É depreciação da obra.

Mas os livros do Francis são uma graça. Ainda quero escrever um livro de memórias tão bom como o seu O afeto que se encerra. Não sei se conseguirei escrever com tanta delicadeza como Francis escreveu este livro, principalmente as primeiras páginas que anunciam suas memórias. Não são apenas páginas escritas por um cronista qualquer. Há beleza nas palavras, nas frases, no sentido; há arte ali, que se expressa para mim como um ideal de forma, algo a ser alcançado e quando eu o leio, faz com que eu me sinta bem (há alguns anos eu riria se lesse isto) espiritualmente. Se trata justamente do que James Joyce disse em Portrait of the artist as a young man:

"Beauty expressed by the artist cannot awaken in us an emotion which is kinetic or a sensation which is purely physical. It awakens, or ought to awaken, or induces, or ought to induce, an esthetic stasis, an ideal pity or an ideal terror, a stasis called forth, prolonged and at last dissolved by what I call the rhythm of beauty (...) We are right and the others are wrong. To speak of these things and to try to understand their nature and, having understood it, to try slowly and humbly and constantly to express, to press out again, from the gross earth or what it brings forth, from sound and shape and colour which are the prison gates of our soul, an image of the beauty we have come to understand - that is art."

Não dá vontade de abraçar este texto? E não o traduzo para provocar e esnobar os que ainda não lêem inglês até se irritarem às lágrimas e se convencerem a aprender esta língua para que experimentem os originais de James Joyce. Espero que funcione.

Francis não conseguiu fazer funcionar muito e ganhou vários detratores com isto. Acredito que os maiores conflitos de Francis estiveram relacionados mais à energia com a qual escrevia do que propriamente com suas opiniões. Paulo Francis era enérgico sempre e causava furor, entretanto era justamente esta a sua maior qualidade. Kenneth Clark, um grande estudioso da arte, da história e da arqueologia - e evidentemente indicação de Paulo Francis -, diz que todas as grandes civilizações foram impulsionadas pela energia e por um sentido de permanência, que é o que Paulo Francis tentou nos ensinar até seu último momento, não? Caminhar para a civilidade em vez de continuarmos a ser estes pobres bárbaros tropicais. Será que um dia conseguiremos?

Nota do Editor
Edward Bloom é autor do blog Introibo ad altare Dei.

Eduardo Mineo
São Paulo, 8/3/2007

 

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