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Quarta-feira, 21/3/2007
Scott Henderson, guitarrista fora-de-série
Rafael Fernandes

Nascido em 1954 e criado na Flórida, Scott Henderson é um dos ícones da guitarra elétrica moderna. Idolatrado num pequeno nicho (muito provavelmente por sua música variar entre o jazz fusion e um blues-rock envenenado, estilos não muito populares, digamos) certamente não tem a reverência na proporção de seu talento e suor. Esteve no Brasil para shows no Festival Jazz & Blues em Guaramiranga e Fortaleza e para uma apresentação de embasbacar em São Paulo no pequeno e charmoso Ao Vivo Bar. A sensação de ver um mito - não por celebridade, mas por obra - a poucos metros de distância beira o indescritível. Uma ótima experiência em plena terça-feira de carnaval!

O guitarrista ficou inicialmente conhecido por integrar a Chick Corea's Eletric Band, mas chamou atenção mesmo na banda que liderou em parceria com o baixista Gary Willis - o Tribal Tech, uma banda de fusion "nervosa", que unia harmonia e melodia complexas típicas do jazz, divisões rítmicas quebradas e não usuais com uma pegada forte característica do rock. De 1986 a 2000 lançaram uma dezena de excelentes álbuns, com grandes músicas executadas com rigor e disposição. Gary Willis mudou-se dos EUA e o Tribal Tech parou suas atividades por tempo indeterminado. Graças ao YouTube podemos ainda ver pequenas mostras de suas apresentações. Aqui, a fantástica "The big wave", que abre o álbum Illicit de 1992 e aqui outra excelente, "Canine", de melodias insinuantes presente no álbum Face First, do ano seguinte.

Em 1998 e 2000, o guitarrista tocou num trio de arrasar, com o baterista Steve Smith e o baixista Victor Wooten, outros dois instrumentistas fora de série. Assim surgiu o Vital Tech Tones, nomeado a partir das bandas principais dos músicos: Vital Information (Smith), Tribal Tech e Bela Fleck and The Flectones (Wooten). Novamente é o fusion que aparece, mas numa sonoridade muito mais roqueira e limpa. As músicas iam surgindo de improvisos, gerando pérolas como "Crash course", "King Twang", "SubZero", "Catch me if u can", entre outras, presentes em seus dois discos auto-intitulados.

Sua carreira solo é mais ligada a uma sonoridade blues-rock - sem abdicar do fusion, claro - e afirma seu talento não apenas como guitarrista, mas também como compositor, já evidenciado no Tribal Tech. Em comparação ao Tribal, Scott solo tem sonoridade mais crua e livre dos teclados, que por vezes soavam enjoados e excessivamente ligados a uma sonoridade viciada do fusion dos anos 80. Foi iniciada paralelamente à sua banda principal em 1994 com o disco Dog Party, com várias referências a cachorros, a começar pela hilária capa. Musicalmente tem tanto canções instrumentais quanto vocais - mais uma marca do trabalho solo; alternam no posto de cantores Erin Mcguire e o baterista Kirk Covington. Entre os destaques estão a faixa título, "Hole Diggin'" e uma espécie de balada blues intrincada e num formato acústico - "Same as you". Essa faixa, aliás, é revisitada (numa versão elétrica) em Tore down house de 1996; outros achados deste disco são a faixa-título - outra "balada intrincada" - e "You get off on me", um rock nervoso. Well to the bone, de 2002, traz algumas das melhores músicas com vocais já compostas pelo guitarrista, como "Devil boy", "Lady P.", e a fantástica faixa-título. Scott Henderson Live!, de 2005, é seu disco mais recente e foi lançado no Brasil pela Hellion.

O guitarrista ficou do dia 18 ao dia 23 de fevereiro no Brasil basicamente para participar do Festival Jazz & Blues em Guaramiranga e Fortaleza, no Recife, que contou também com artistas como Egberto Gismonti, Arismar do Espírito Santo, Badi Assad, Oswaldino do Acordeon, entre outros. Felizmente deu um "pulinho" em São Paulo, para o show no Ao Vivo Bar e um workshop no Conservatório Souza Lima. Esteve acompanhado de dois excelentes músicos: John Humphrey (seu baixista mais assíduo) e o baterista Alan Hertz, substituindo quem o acompanha desde o disco Dog Party - Kirk Covington, que além de tocar, canta. Por isso, a apresentação de São Paulo foi estritamente instrumental; dividiu-se em dois sets de cerca de uma hora cada, com um intervalo de meia hora, no qual o guitarrista passou sentado à beira do palco, atendendo os fãs com autógrafos, fotos, apertos de mão, algumas conversas e recebendo tapinhas nas costas, com uma enorme simpatia e humildade. Aliás, humildade também presente antes do show, quando Scott entrou no palco para regular e afinar sua guitarra, gerando um misto de frisson e anticlímax.

O repertório guiou-se em seu último lançamento (que por sua vez se baseou no disco Well To The Bone), mas começou com um clássico: "All blues" (Miles Davis). Para destacar algumas das grandes performances da noite, fico com "Devil boy", que começa como um "rockão" nervoso e se transforma num blues - uma bela cama para os improvisos de Scott Henderson. Originalmente do disco Well To The Bone, se sustentou muito bem sem vocal e ficou extremamente pesada ao vivo. E essa foi a tônica da noite: peso e vigor, que não se fazem tão presentes em suas gravações de estúdio. Outros dois destaques vieram do mesmo disco: "Lady P." e "Sultan's boogie". Pegou uma música do repertório do Vital Tech Tones, "Nairobe Express" e do disco Live! veio "Silidin'".

Por último, "Hillbilly in the band" se inicia com uma série de licks com delays que desemboca num country esperto. Uma ótima música para encerrar o show por ser bastante representativa de seu estilo, que faz uso intenso da alavanca da guitarra, quase que ininterruptamente e alia isso a uma pegada forte, única, que torna seu tocar bastante expressivo; sua execução é cheia de nuances e dinâmicas. Amante do improviso, seu objetivo é sempre o fraseado coerente, que é consistente, bem feito e tem grande variedade melódica e rítmica. É claro que há espaço para um virtuosismo desenfreado, mas isso é o de menos - o importante é a comunicação através de suas idéias musicais, os solos devem ter começo meio e fim, como numa conversa ou num texto - e conseguem estar ligados ao contexto da música. Com suas execuções ao mesmo tempo estudadas, espontâneas e intensas, Scott Henderson é uma espécie de Jimi Hendrix moderno com estudo formal, e como nos grandes usa seu conhecimento a serviço da música, da espontaneidade, da criatividade. (E para os geeks da guitarra, vale ressalvar seu timbre quente e cortante, com um belo crunch; desculpem-me, mas não achei palavra melhor em português - os geeks que se virem pra entender...). Foi uma grande exibição de um dos ícones da guitarra mundial, para deleite dos amantes deste instrumento já não tão novo, mas que ainda tem muitas válvulas pra queimar.

Rafael Fernandes
São Paulo, 21/3/2007

 

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