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Segunda-feira, 19/3/2007
A Letras, como ela é?
Verônica Mambrini

Tudo de novo: fazer matrícula, aula magna, mais uns bons anos por aí lendo muitas xerox, alguns fins-de-semana escrevendo trabalhos, artigos, análises, ensaios. Pontinha de inveja daqueles que antes de acabar a faculdade já estão com a pós-graduação engatilhada e sabem exatamente o querem fazer da vida. Incrível eu não saber, porque antes da faculdade eu tinha certeza absoluta de que pós eu queria. Agora que eu me formei — faz um ano — não sei mais nada. E não é que eu não queira me especializar. Meu problema é que eu quero me especializar em tudo. Eu sempre tive uma dificuldade em circunscrever limites para meus campos de estudo, lazer... Drummondianamente, o mundo é vasto, mas mais ainda é meu coração.

Fiz Cásper Líbero, e meu curso passou pelo pior ano dos últimos anos do curso de jornalismo. A saber, foi 2003, ano em que houve uma crise política (um eufemismo para a guerra de egos que tomou conta da coordenadoria do curso), greve, professores se demitindo em massa. O que sobrou foi um bando de alunos desestimulados, um punhado de professores que continuaram dando suas aulas como se nada tivesse acontecido e muitos substitutos convocados às pressas para substituir os desfalques, que praticamente improvisaram as aulas até o fim do ano. Trazidos diretamente do mercado para a sala de aula, os professores substitutos "pegaram o bonde andando", sem necessariamente terem uma vocação ou talento especial para dar aulas (formação específica para isso, então, nem pensar). Mesmo sendo um curso considerado muito bom pelo mercado, não consigo me lembrar de nenhum formando do meu ano satisfeito com a formação casperiana. Eu certamente não estou.

No fim, resolvi prestar vestibular de novo. Acabei passando: Letras, na USP. O que eu espero de uma segunda faculdade, na FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas)? Formação humanística. Ainda que a melhor parte da Cásper Líbero tenham sido as aulas teóricas, como Sociologia da Comunicação e Comunicação Comparada (dadas por professores de carreira que têm uma noção vagamente melhor do que fazer com aquelas dezenas de pessoas acomodadas em carteiras a cada aula), a sensação ao terminar o curso é que tudo falta: referenciais técnicos e teóricos. As maiores ferramentas para filtrar, entender e alterar o mundo ainda não foram dominadas. Então resolvi procurar mais algumas, num outro campo.

Véspera da primeira aula e nada da sensação de tout nouveau, tout beau que eu esperava. Domingo à noite, resolvo dar uma espiada na pequena pilha de papéis que me entregaram no momento da matrícula. O primeiro é um boletim do "Comitê Contra a Repressão e pelas Liberdades Democráticas", que recebi antes mesmo de efetivamente me tornar aluna, na fila da matrícula. Relata repressão em campi de várias universidades, sem dispensar um tom irônico e dramático na maior parte dos textos. Diz o boletim que alunos estão sendo presos por pichações políticas. Festas estão sendo proibidas. E reclamam ainda de "grades, câmeras, punições, segurança privada e PM". As catracas e carteiras de identificação também são vilanizadas. A sensação é de que não saímos mesmo da repressão ditatorial miliar de décadas atrás... mas ao mesmo tempo, leio nos jornais e escuto comentários de amigos sobre estupros e assaltos na Cidade Universitária. Certamente os alunos perderam a batalha: algumas mudanças são irrefreáveis; mas, pior ainda, me parece que as reivindicações estão erradas. A teia social é mais complexa do que situar a segurança privada num extremo do mal. É ruim precisar de segurança privada — é o fim de mais um espaço público que conversava com a comunidade livremente. Mas é ainda pior que os próprios alunos ataquem o paliativo em vez da doença... um verdadeiro tiro no pé por burrice.

Boas-vindas de papel
No meio da papelada inicial, recebi um simpático "Manual do Calouro". Algumas informações úteis, mais um pouco de protesto e raivosas reivindicações do movimento estudantil, e uma porção de erros de português. Ao identificar os deslizes, fiquei chocada. Na seqüência, me reprimi. Passou pela a cabeça a idéia de que talvez seja proposital, de que se esteja adotando uma variante da língua que não a norma culta. Depois a idéia me pareceu absurda. No fim, ainda não cheguei a uma conclusão. Os "erros" não me parecem deliberados; mas na primeira semana, assisto à primeira aula de Introdução à Língua Portuguesa, que promete estudar e valorizar as diferentes formas de usar o idioma, adequadas aos mais diferentes contextos. Fico com a severa impressão de que o mais adequado para o manualzinho era linguagem jornalística, mas lembro que a faculdade de jornalismo doutrina o uso da linguagem de uma forma quase fascista. Melhor deixar para pensar nisso semestre que vem.

(Acabou caindo na minha mão o manual dos calouros da Mauá, faculdade de engenharia em que meu irmão acaba de ingressar. Ele passou os últimos meses repetindo o bordão de cursinho pré-vestibular "errar é humanas" de forma irritante, cada vez que via um erro — de digitação que fosse — em jornais e revistas que lhe caíam na mão. Claro que pululam problemas de ortografia, concordância e afins no manual feito pelos alunos da faculdade dele. Perguntei se ele queria que eu revisasse. Ele não quer. Disse que "engenharia é assim mesmo, não precisa saber falar português". E arrematou: "Além disso, vão me zoar se eu tentar corrigir". Tem algo de errado com as visões de mundo.)

Passo para o próximo folheto: agora um informativo oficial da FFLCH, de boas-vindas aos ingressantes. O português é impecável. A diagramação, elegante, embora pouco moderna. Mas tão ilegível quanto o anterior! O problema, dessa vez, é o texto pesado, com um vago cheiro de ácaros de biblioteca. Arrastado, sisudo. Precisa ser assim para atender à norma culta? Por que esse abismo aparentemente intransponível?

Não dá para saber até onde os problemas são endêmicos de cada faculdade (na minha experiência, jornalismo na Cásper Líbero e agora, ainda que bem recente, Letras na USP) porque não há avaliações, raios-x confiáveis do ensino superior no Brasil. Não posso generalizar, mas em conversas com estudantes de ensino superior, não vejo grandes diferenças. As expectativas caem por terra, no máximo, até o fim do segundo ano.

Vale lembrar que esse texto não é uma transposição da radiografia que meu editor neste Digestivo, Julio Daio Borges, fez da Politécnica no texto célebre "A Poli como ela é", — que no próximo setembro completa dez anos. É muito mais uma inquirição pessoal do que se pode esperar do ensino superior, filtrado pela minha experiência pessoal. "A Poli como ela é", de qualquer modo, continua uma referência para se pensar na faculdade desde linhas gerais (como a grade curricular) ao cotidiano (como o problema de salas sem ventilador ou banheiros em estado lamentável). Até porque com uma semana de curso, se percebe muita coisa no ar, mas não se pode afirmar nada. Ou quase nada: por um erro nos programas da primeira semana distribuídos aos calouros e pregados nas paredes, foi divulgado que Antonio Candido daria as aulas inaugurais aos dois períodos (matutino e noturno). Na verdade, era apenas uma aula para as duas turmas, no matutino, que eu perdi. Com um pouco de sorte, posso tentar ver de novo ano que vem, se Candido repetir a palestra inaugural. Diz muito, não?

Apesar de algumas dificuldades que já sinalizaram que devem me acompanhar por um bom tempo (como a infra-estrutura kafkiana, que burocratiza e atrasa tudo), eu acho que esse curso vai ser legal. Me desejem boa sorte nesses próximos quatro, cinco anos?

Verônica Mambrini
São Paulo, 19/3/2007

 

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