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Quinta-feira, 29/3/2007
Sob as calmas águas do Lago Ness
Adriana Carvalho

Aquela foto de comida que eu ajudei a produzir para a capa da revista no mês passado e que até ontem eu tinha achado maravilhosa, na verdade ficou uma porcaria. Não vi que o sanduíche que eu montei com tanto capricho ficou torto e faltou um pedaço de pão embaixo. A parte que aparece um prato de feijão com arroz também está uma droga. Quis fazer, como os chefs, aquele arroz arrumadinho com uma forma e ficou parecendo um espigão, quase do tamanho do obelisco do Ibirapuera. Totalmente desproporcional.

Resolvi relaxar na hora do almoço e comprar uma calça nova. Péééééém, apita o grilinho falante na minha cabeça: péssimo dia para comprar calça, diz ele. Afinal você está inchada como um baiacu, absolutamente nada vai servir em você e vai sair da loja completamente deprimida. Dou um catiripapo no grilo e entro na loja mesmo assim. Sai tudo como ele falou. Experimentei seis calças e nenhuma ficou boa. Um desastre.

Nesses dias, tudo que eu quero é ficar no meu canto, ler em paz um pedaço de jornal. Mas é lógico que ninguém nunca me deixa sossegada. Tem que ter alguém para dar uma resposta comprida e detalhada para um simples cumprimento de "Bom dia, tudo bem?". Por fora, aparento a calma das águas do Lago Ness, mas lá no fundo o monstro quer pular e dizer: "por favor, apenas limite-se a respirar".

Hoje também não é um bom dia para tarefas estúpidas e burocráticas. Mas tenho que conferir tabelas. Milhões de números que eu leio em voz alta como se estivesse narrando corrida de cavalo, para terminar mais rápido. Em dias normais, eu em situações como essa teria vontade de ter acessos de riso ou de ler os números cada vez imitando uma voz diferente. Mas hoje eu quero é escancarar a janela e gritar lá para fora: "ONZE MIL QUATROCENTOS E CINQUENTA E SETE REAIS E VINTE E CINCO CENTAVOS, QUE VIDA É ESSA??? FOI PRA ISSO QUE ESTUDEI QUATRO ANOS DE JORNALISMO E AGUENTEI ATÉ AULA DE TAQUIGRAFIA?!?!"

Fuço a internet e acho uma coisa bem interessante no site Panelinha. É um pequeno guia sobre a TPM, a temida tensão pré-menstrual. Lá está escrito que há quatro tipos de TPM. Basta ler a descrição de cada um para ver quais as melhores dicas de alimentação que ajudam a reduzir os sintomas. O primeiro é o tipo A. Vejamos: ansiedade, irritabilidade, oscilações de humor. Acho que achei o meu tipo logo de cara. Leio o segundo, chamado de tipo C (que palhaçada é essa? Por que do A não vai para o B???): compulsão por açúcar, fadiga, dor de cabeça. Pera aí, esse também é meu tipo, como assim?? Do C vou para o tipo D, que tem outras características minhas, como confusão mental e perda de memória (embora a perda de memória, especialmente para caminhos e indicações de trânsito seja uma constante na minha vida). Finalmente chego ao tipo H, cujos sintomas são inchaço e ganho de peso. Devo me jogar da ponte ou o quê, com esse teste?? Sou de todos os tipos de TPM ao mesmo tempo?? Como pode ser isso?? Bem que meu marido diz que nesses dias do mês ele tem vontade de me trancar numa jaula tipo de bicho de circo e me jogar um naco de carne crua de vez em quando. De longe, ainda por cima, para não levar uma mordida. Outra opção, segundo ele, é ele mesmo se trancar na jaula nesse período do mês.

De volta para casa, no metrô, muita coisa me irrita. Propagandas com gente sorrindo bestamente, por exemplo. O que há de tão engraçado num extrato de tomate para essa mulher do anúncio dar risada para ele? O trem chega lotado e a boiada estoura para dentro do vagão, disputando a tapa cadeiras vagas e frestas para se segurar nas barras de ferro. E dão risada, acham divertido! Que o MP3 me salve, me poupe e me economize disso tudo! Aumento o volume e aperto mais os fones no ouvido para me livrar dos ruídos externos. Mas hoje parece que nem a música mais angelical seria capaz de me pacificar, até o Eric Clapton está me tirando do sério. É que resolvi prestar atenção à letra de "Wonderful tonight": a amada se arruma para ir com ele a uma festa, pergunta se ela está bem vestida para o evento, ele responde que ela está maravilhosa, etc. Só que na volta o folgado fica com "dor de cabeça" (está completamente chapado, lógico!), dá as chaves do carro para ela dirigir e ela ainda tem que colocar o bonitão na cama. "Mas, querida, você está maravilhosa, hoje!". Cínico...

Até aqui estamos em 4500 caracteres. Esta coluna tem que ter pelo menos 5 mil. Que tipo de aspirante a escritora sou eu se fico aqui suando e sofrendo para parir míseros 5 mil caracteres por semana? É ainda mais humilhante depois de ler um trecho do livro maravilhoso de Alexandre Dumas que estou terminando agora, Memórias gastronômicas, em que ele, já mais velho e doente, se queixa da ruína financeira após o fracasso do empreendimento de seu Teatro Historique, e lamenta que durante quinze anos sua produção "não passa de três volumes por mês". Tudo bem que nessa época de "ruína" ele viajava pela França acompanhado de ajudantes e cozinheira e que só vivia de escrever, não tinha dupla jornada de trabalhar fora e cuidar da casa. Tudo bem que eu não sou o Alexandre Dumas também. Ah, quer saber? Tudo bem... amanhã tudo isso vai passar. Vai voltar a ficar tudo bem.

Adriana Carvalho
São Paulo, 29/3/2007

 

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