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Segunda-feira, 16/4/2007
Um sopro de vida na literatura
Ram Rajagopal

Meu primeiro contato com historias em quadrinhos (HQ) aconteceu através de um universo pouco conhecido no Brasil: a imensa série indiana Amar Chitra Katha, cujo objetivo explicitamente citado é apresentar os grandes épicos indianos e estórias indianas sobre cultura, história e sociedade. A cultura indiana sempre viveu da transmissão oral do conhecimento, especialmente através de dramatizações e criação de estórias. Uma série especial, e bastante diferente do que se encontra por aí. As estórias sempre incluíam muito humor, muito conhecimento, e uma simplicidade que raramente encontrei depois. Ainda assim, na minha infância o maior impacto emocional foram as estórias que ouvi nas sessões de ouvir estória com meus pais, ou na casa dos meus avós na Índia.

Algum tempo depois, entremeado com leitura constante das aventuras do Tio Patinhas e da Turma da Mônica, ganhei de presente Casa Grande e Senzala em quadrinhos. Este título foi o que melhor me traduziu o Brasil colonial; mesmo na minha infância, pude entender alguns aspectos daquela vida. Reli ele mais tarde, e obviamente absorvi muito mais. Mas ficou claro para mim o poder dos quadrinhos: transmitir indelevelmente, visualmente, idéias e emoções através de gerações, mesmo após palavras terem mudado ou perdido seu significado. Depois acompanhei o universo Marvel e DC Comics, incluindo o início da era das Graphic Novels no Brasil. Nunca fui um fanático por HQ, mas sempre achei divertido.

Por um tempo andei afastado do universo HQ. Minhas últimas leituras tinham sido From Hell de Alan Moore e Eddie Campbell (com ótima resenha do pundit Rafael Lima), Palestine e Safe Area Gorzade, ambos do excepcional jornalista e quadrinhista Joe Sacco (e olha a resenha aqui).

Joe Sacco foi o primeiro a me mostrar uma nova possibilidade neste universo: o jornalismo por quadrinhos. No entanto em boa parte das HQ que li, eu sempre senti a ausência de um elemento que é essencial para mim: um toque mais sutil, uma viagem indo um pouco além da imaginação e dos ótimos desenhos. O toque que havia encontrado sem tanto refinamento nas HQ indianas. Pensei que iria encontrar este lado mágico em Sandman, criação do legendário jornalista e escritor Neil Gayman. Sandman é maravilhoso. É um pouco poético, um pouco fantástico, e meticulosamente ocidental em seu projeto. Talvez fosse este o incômodo. Por isso, larguei do Universo HQ por uns anos. De certa forma me parecia limitado a um certo tipo de pensamento, a certas intenções de seus autores. Gênios como Frank Miller, Moebius, sempre me encantaram, mas não o suficiente para que depois de ler duas ou três obras, eu voltasse a explorar este universo.

Anos depois, debruçando sobre as prateleiras de uma mega-store aqui perto de casa, vi um volume que me chamou a atenção, um mangá, Buddha, de Osamu Tezuka. A primeira vez que havia visto um mangá, havia achado ele meio entediante, uma espécie de propaganda de 5 minutos, cheio de cores e sons bacanas, mas sem conteúdo. Não foi o caso do mangá de Osamu Tezuka. Começei a ler o primeiro volume da coleção - que coleta todos os mangás em 7 volumes - e só consegui parar depois de devorar avidamente as 400 páginas. Incrivelmente, entrei na vida de Siddartha, como eram minhas experiências na minha infância, ou acontece na leitura dos livros pelos quais me apaixono.

Novamente havia encontrado em uma revista em quadrinhos aquele impacto que tive ao ouvir as estórias indianas quando criança. Osamu Tezuka utiliza genialmente os elementos de um típico mangá para expressar emoções e conflitos de maneira refinada, que foge do universo HQ tradicional. Nos momentos de grande sofrimento, ou violência, os olhares dos personagens transmitem algo além daquela cena, uma certa introspecção, que caracteriza boa parte dos personagens que se envolvem na belíssima história de Siddartha. O roteiro é absolutamente perfeito, e conta em detalhes, com um pouco de liberdade histórica e factual, a jornada de Siddartha a sua iluminação. Mas ao invés de fazer uma estória crua, ou com um humor meramente cáustico, Tezuka mescla um humor escrachado, com a própria busca de Buddha, em vários momentos mostrando o ridículo de certas situações e intenções. O autor mesmo faz certos cameos engraçadíssimos na estória, como por exemplo em uma cena onde chamam um médico, e aparece o autor de jaleco e óculos.

O grande charme da estória é justamente ser leve, dosando cuidadosamente, a profundidade da busca por auto-conhecimento - que caracteriza todos personagens envolvidos - com este lado bem humorado. Já faz muito tempo que não leio um romance na literatura que tenha tido tanto impacto em mim. Sempre achei o universo HQ de certa forma uma evolução do livro, e o mensageiro do futuro, tendo o mesmo papel que os grandes romances representaram para nós nos últimos séculos. As novas gerações amam este universo, e ele cresce rapidamente em sofisticação. Se depender de gênios como Tezuka, ainda teremos muitas descobertas a fazer nesta nova linguagem.

Para sorte dos leitores em português, a Conrad lançou esta coleção maravilhosa. A tradução está bem feita, e a qualidade do título é excepcional no lançamento em português, sem ficar nada a dever ao lançamento internacional. Se você quer uma nova experiência, e sempre passou longe do universo HQ, recomendo fortemente este título. Assim como todos os outros mencionados nesta coluna. Sem dúvida, o universo HQ é hoje o repositório de algumas das mentes mais criativas da atividade artística.

Post Scriptum
Numa coluna futura próxima vou contar mais sobre minhas explorações em um outro universo, que tem me entretido imensamente: o universo dos animes. Ah, e antes que vocês me perguntem: sim acho que HQ é literatura, da melhor qualidade. E estou ansiosamente aguardando a chegada do meu primeiro Eisner pelo correio.

Ram Rajagopal
Berkeley, 16/4/2007

 

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