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Quinta-feira, 26/4/2007
Preguiça culinária
Adriana Carvalho

Às escuras, a livraria do aeroporto fica sinistra. Enquanto lá fora a chuva forte e o vento destelham hangares, apagam as luzes e interrompem os vôos, aqui dentro os passageiros sentem-se perdidos com tanto tempo ocioso pela frente e nenhuma possibilidade de café expresso. Não há energia para as máquinas. O balcão da livraria é o lugar mais improvável - mas é preciso tentar - para se conseguir a reconfortante bebida. O homem que chega empurrando seu carrinho de bagagens até treme um pouco, talvez para causar pena à moça do caixa, e pergunta: "Tem café?". A moça, na verdade não tão moça assim, responde friamente que não. O homem tateia no escuro e vai embora cabisbaixo, desviando os pés da enxurrada de água que outro funcionário expulsa da loja ao lado, com um prosaico rodo de madeira. Procura uma cadeira, senta-se pesadamente e fita o vazio. Talvez esteja amaldiçoando o péssimo preparo das lanchonetes para emergências como essa: a velha dupla coador e pó de café teriam feito fortuna nesse final de tarde em Congonhas.

Enquanto pago por uma barra pequena de chocolate e um chiclete, minhas parcas provisões para horas de espera, ouço a funcionária da livraria comentar com um colega. "Adoro quando falta luz. Só para ouvir os clientes me pedirem café e eu responder 'Não tem café, acabou a energia'. Quando trabalhava em lanchonete era legal porque além de pedir café, eles também pediam pão na chapa e eu respondia do mesmo jeito 'nada feito, acabou a luz'".

Como podem ver, nem só de carinho de bolo de laranja de mãe, paixão de salmão ao forno de namorada que quer fisgar o amado pelo estômago ou alegria barulhenta dos almoços de família são constituídos os sentimentos que unem os humanos à cozinha e à nobre tarefa de servir e alimentar o próximo. Há também muita preguiça e pequenas maldades como essa da moça nem tão moça assim. Comer é um sentimento, como diz o título do livro do crítico francês François Simon. Cozinhar (mesmo que seja preparar um café com pão na chapa) também. Só que nem sempre é um sentimento edificante.

Lembro de uma viagem à praia, no tempo em que eu ainda achava divertido acampar (sinto muito, hoje em dia eu quero mais é uma boa cama sem formiga). Na lanchonete precária, mortos de fome e com pouca verba disponível, pedimos um "americano". "Não dá pra pedir outra coisa?" - pergunta a pseudo-garçonete sem cerimônia. "É que eu odeio fritar ovo". Pedimos pão com queijo não em respeito ao descaso da senhorita, mas porque comer coisa que os outros preparam com desgosto faz muito mal para o estômago.

Até entendo a ojeriza dela pelos ovos fritos. Eu mesma fiquei brigada com eles por um longo tempo. Nunca ficavam bonitos como os dos filmes ou dos cozinheiros profissionais, com a bela clara redondinha emoldurando a gema que nunca se estoura. Era um carnaval de bolhas na frigideira e eu pulando com a espátula estupidamente em volta do fogão, tentando escapar dos jatos de óleo fervente. O resultado era a clara chamuscada quando não completamente torrada e a gema mole, coisa que detesto. Até que depois de muitas bolhas na mão, consegui me acertar com essa tarefa básica: agora uso frigideiras antiaderentes e pequenas, e despejo o ovo no óleo ainda frio. Assim a clara frita lentamente, dando tempo para que a gema também fique firme. Alguns dirão que é um absurdo, que ovo tem que ser feito na gordura quente ou que bastava jogar um pouco de farinha de trigo no óleo para não espirrar. Mas essa relação entre cozinheiro e comida é tão pessoal que também já aprendi que cada um acha seus jeitos de se entender com as panelas.

Outro jeito que aprendi para preparar ovo frito sem a culpa de todo aquele óleo é fazê-lo dentro do pão. Quem diz que pão com ovo é coisa de pobre não sabe o que está perdendo! Pego duas fatias de pão de forma (se for pão integral caseiro é ainda melhor), unto com azeite (extravirgem, evidentemente) e tiro um pedaço circular do miolo. Como o pedaço circular com azeite, que é uma ótima forma de abrir o apetite, e coloco o pão com buraco na frigideira, também untada com azeite. Quebro o ovo dentro do buraco e ligo o fogo baixo. O ovo frita dentro do pão!

A preguiça é um pecado, a gula também. Mas a soma dos dois nem sempre é ruim. Veja por exemplo os molhos de tomate "pedaçudos", aqueles em que não se tem o trabalho - que não é tão complicado assim - de bater no liquidificador ou passar na peneira os tomates cozidos. Com certeza não foi alguém dotado de paciência e minúcia que inventou. E é uma delícia! Eu particularmente gosto de receitas como essas, que dizem "pique grosseiramente", ao invés de "fatie microscopicamente" ou "corte em quadrados de 1,2 mm". Grandes pedaços de tomate (mas é preciso tirar a casca, disso não se escapa) refogados em alho e cebola (em grandes rodelas) com azeite (sempre azeite!), temperados com sal e pimenta. Pinga-se água o quanto baste e deixa-se apurar. Se a preguiça for menor do que a gula, escaldam-se os tomates inteiros para tirar a casca e faz-se o molho da mesma forma, com os tomates pelados e muita cebola. É bom demais.

Lógico que alguém pode dizer que preguiça de verdade é abrir uma lata de molho pronto e despejar sobre miojo. Ou usar aquele temperozinho infame que vem com o macarrão instantâneo. Não, isso não é preguiça. É mau gosto. Para se comer bem é preciso usar ingredientes e sentimentos na medida certa, até mesmo a poca voglia (pouca vontade, em italiano). Molho pronto puro na comida é de um desamor sem precedentes.

Quer outro molho maravilhosamente preguiçoso? O pesto, eu diria. A receita é batida (literalmente, até), mas é matadora. Não demora dois minutos passar manjericão, parmesão (ou pecorino), azeite, alho, pouco sal e nozes (ou castanha de caju ou pistache) no processador ou liquidificador. Dá para guardar em um vidro por vários dias na geladeira. Para um jantar rápido, é o tempo de cozinhar o macarrão e juntar o pesto à massa. Macarrão de verdade, com M maiúsculo, leva em média cinco minutos a mais do que miojo para ficar pronto, não vale a pena esperar? Se achar que não vale, use capellini. É o mesmo tempo do miojo. Pode ser preguiçoso, mas não seja bobo.

Adriana Carvalho
São Paulo, 26/4/2007

 

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