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Quarta-feira, 25/4/2007
As cidades virtuais de Calvino
Tais Laporta

Viajar sem sair do lugar. Só livros excepcionais permitiam esse luxo antes da internet. Quando a Web não percorria quilômetros em segundos, alguns escritores já haviam eliminado o espaço físico da literatura. Ítalo Calvino (1923-1985), em As cidades invisíveis (Companhia das Letras, 1990, 150 págs.), foi um desses desbravadores. Impossível ignorar seu faro virtual, aguçado antes mesmo do ciberespaço tomar forma.

Calvino só podia ter algo de latino nas veias. Isso explica como um cubano de sangue - mas italiano de vivência - bebia de Jorge Luís Borges e Julio Cortázar, grandes expoentes do realismo mágico. A arte de Calvino, no entanto, está mais perto de um "realismo imaginário". Em 1972, seus leitores conheceram Marco Polo, o mercador de Veneza mais viajado do mundo. Descrevia os passeios a vastas terras ao imperador Kublai Khan. Este, frustrado por não conhecer toda a extensão de seu próprio reino, contentava-se em imaginá-lo através de Marco Polo. Nasce, daí, um diálogo profundo entre o ouvinte e o contador de histórias. Qualquer semelhança com As mil e uma noites é, certamente, proposital.

As 55 cidades que Calvino descreve em As cidades invisíveis lembram o terreno inesgotável da internet. Embora a analogia pareça ingênua, as terras descritas excluem qualquer lógica do espaço material. Permitem, no entanto, possibilidades infinitas. Explico: uma cidade inteiramente feita do passado. Tudo nela é memória. Portanto, nada é, apenas foi. Podemos dizer que Calvino antecipou, sem saber, a lógica virtual na literatura. Nas suas cidades, qualquer coisa é possível: casas suspensas no ar, cópias perfeitas do cotidiano no subsolo, prédios feitos só de palavras, outros só de gestos. As possibilidades são inesgotáveis.

Mas como Calvino descreveu um mundo físico com conceitos totalmente simbólicos? Cada cidade é uma metáfora? Será que em As cidades invisíveis tudo o que fez foi apresentar o real através de conceitos abstratos? Seja como for - cada leitor costuma ter uma impressão diferente - ninguém pode negar que para entrar nas terras de Marco Polo é preciso destruir a linearidade de tempo e espaço. Não há limites entre as cidades: podem estar a distâncias infinitas, entrelaçadas ou essas duas coisas.

O livro não deve ser lido de forma convencional. Embora haja uma história, é preciso abandonar a expectativa de continuidade. Não importa o antes e o depois. O leitor pode começar por qualquer página, em qualquer ordem, de trás para frente. Portanto, o ideal é consumir cada capítulo separadamente - não como em um Gotas de sabedoria, mas com atenção especial - embora todos formem um conjunto harmonioso. Permitem qualquer combinação sem perder o sentido.

Calvino brinca com o terreno das possibilidades, e mostra que, de tão limitada que é a percepção humana, quanto mais se imagina, mais se descobre o quanto falta imaginar. Nesse sentido, traça um paralelo com a biblioteca de Babel, de Borges, que incluía todos os livros já escritos e os que nunca foram, mas poderiam ser, de todas as formas: "Não posso calcular certos caracteres (...) que a divina Biblioteca não tenha previsto e que nalguma de suas línguas secretas não contenham um terrível sentido". Nada no real chega mais perto disso do que a internet.

Na literatura calvinista, os sentidos não encontram território sem os símbolos. A descrição das cidades, também, é extra-sensorial - e nada tem a ver com o misticismo. "A fluidez de um mundo que se constitui através da audição, do odor, do paladar e de um olhar que não é o ver, mas o emergir na coisa", aponta Adair Neitzel em tese de doutorado da UFSC. Cassiano Elek Machado, em artigo na Folha de São Paulo, definiu que As cidades invisíveis encontra sentido na ausência. "Seria um livro para ser lido naquilo que nele não está escrito. Pelo frio se entenderia o calor, pelo barulho, o silêncio, a saudade seria o atalho do amor", analisa.

A melhor forma de percorrer as cidades não é com os olhos, porque elas não podem ser vistas senão de forma abstrata. "A travessia é interior", analisa Neitzel. E reflete: "Como num delírio, a lógica é rompida pelo discurso fantástico que extrapola a rede de significações e representações dos signos renovando e subvertendo os fatos reais, abandonando a consciência e explorando o inconsciente, os tempos e espaços livres."

Embora invisíveis, as cidades de Marco Polo não podem ser chamadas de irreais ou impossíveis. A justificativa é simples: o que pode ser imaginado existe, ainda que como uma representação. Mas as cidades calvinistas também não se encaixam como mera fantasia. Vão além do mágico, porque são mundos alternativos. Possíveis - até que alguém prove o contrário. Bem que poderiam existir num Second Life. Por que não? A narrativa é cheia de incógnitas e pistas, mas é acessível. Portanto, um labirinto aconchegante.

Não é sem motivos que Calvino afirmou ter reunido todas suas reflexões em um único livro. As cidades invisíveis seria a obra em que teria dito mais coisas. Embora sua literatura seja um exercício que leva a caminhos inexplorados, leva, ao mesmo tempo, a sensações familiares. É como se já tivéssemos passado por aquelas cidades - se não por elas, por lugares muito parecidos e tão loucos quanto - seja em sonhos ou em delírios. É como se não fossemos apenas apresentados às terras de Marco Polo, mas resgatássemos todas da própria memória.

De tão inverossímeis, algumas cidades assustam. É o caso de Trude. "Se ao aterrisar em Trude eu não tivesse lido o nome da cidade escrito num grande letreiro, pensaria ter chegado no mesmo aeroporto de onde havia partido". Já Cloé não parece estranha: "(...) as pessoas que passam pelas ruas não se reconhecem. Quando se vêem, imaginam mil coisas a respeito umas das outras, os encontros que poderiam ocorrer entre elas, as conversas, as surpresas, as carícias, as mordidas. Mas ninguém se cumprimenta, os olhares se cruzam por um segundo e depois se desviam, procuram outros olhares, não se fixam."

O livro pode ser lido dezenas de vezes, sem cansar. Sempre surtirá um efeito diferente. A cada releitura, descobre-se novos ângulos. As cidades de Calvino são como o homem: mudam o tempo todo. Até o livro, na releitura, parece ser outro - em constante transformação. Heráclito, o filósofo que acreditava ser impossível entrar duas vezes no mesmo rio, ficaria fascinado com a obra de Calvino.

Para ir além





Tais Laporta
São Paulo, 25/4/2007

 

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