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Segunda-feira, 30/4/2007
My fair opinion
Eduardo Mineo

My fair lady, como se você já não soubesse, é um musical da Broadway adaptado da peça Pygmalion, de George Bernard Shaw. Na mitologia, Pygmalion é um escultor que se apaixona por uma de suas estátuas. Na peça de Shaw, um professor de fonética (Henry Higgins), em uma aposta com seu amigo (Coronel Pickering), acolhe em sua casa uma pobre vendedora de flores (Eliza) para lhe ensinar a falar como alguém da aristocracia. O objetivo era comprovar suas habilidades de professor levando Eliza a um baile da rainha e a convencendo de que Eliza era da alta sociedade. E como era de se esperar por aqueles que esperam este tipo de coisa, ele acaba se apaixonando pela Eliza.

Pelo menos eu me convenci de que ele se apaixonou pela Eliza. Bernard Shaw talvez não concordasse comigo porque ele era um feminista e feminista é o tipo de gente que fica procurando más intenções em cada sentimentinho de um homem. Diga que está apaixonado para uma feminista e ela vai chacoalhá-lo de ponta-cabeça esperando que caia alguma má intenção no tapete. Ser feminista é viver em tensão, como se fossem jogá-la a qualquer instante numa cozinha para lavar pratos ou passar a roupa. Calma, seja suave, senão em pouco tempo estará com a cara da Betty Friedan.

De qualquer forma, é uma peça maravilhosa. Mesmo com tanta crítica social. Eu tenho certeza de que em outra encarnação eu era um dos velhinhos irritados e suados de infarto que vaiaram Bernard Shaw por causa desta mania besta de "ó, a elite também faz cocô", mas é uma das melhores comédias que existem. Antes de enxergar esta coisa chata de que mudando apenas o jeito de se falar de uma pessoa você altera toda sua posição na sociedade porque, oras, oras, muito hipócrita esta burguesia e tal, eu enxergo uma história maravilhosa sobre um conflito entre ego e amor, como em Orgulho e preconceito, da Jane Austen, mas com toda a genialidade cômica de Shaw. Há algo de muito errado na cabeça de quem enxerga o mundo através apenas desta ótica cinzenta da crítica social.

Esta peça teve uma adaptação fraca para o cinema em 1938. Mais tarde, em 1956, foi apresentada na forma de musical pela Broadway já com o título de My fair lady, estrelando Julie Andrews como Eliza. Em 1964, este musical ganhou sua versão para o cinema, dirigida por George Cukor (Cukor, cara! Cukor!) e com Audrey Hepburn no lugar da Julie Andrews. Esta troca não foi bem aceita porque a Audrey foi dublada por não cantar bem o suficiente (me recuso a dizer que ela cantava mal), mas e daí? A dublagem foi bem feita e o filme é um dos meus preferidos. É tudo muito bonito e de bom gosto.

E agora, a peça My fair lady ganhou uma adaptação brasileira, que me pareceu meio insensata. É difícil adaptar peças da Broadway simplesmente porque eles fazem peças perfeitas. E quando se imita algo que é perfeito, suas duas opções são: fazer igual ou fazer pior. É risco demais.

Por isso eu hesitei bastante em escrever sobre a peça My fair lady em cartaz no Teatro Alfa, em São Paulo, porque certamente eu reclamaria muito, então resolvi não pegar tão pesado para que o texto não soasse grosseiro, mas se quiserem saber minha opinião de verdade, piorem tudo o que eu escrever aqui. E coloquem uns palavrões no meio, também.

Por exemplo, deve ser a primeira vez na história que os atores coadjuvantes foram melhor que os principais. Atuaram muito bem, os coadjuvantes, no nível da Broadway. O grupo que cantou "Wouldn't it be loverly" e os empregados da casa do Higgins foram realmente muito bons. Assim como o figurino, que estava muito bem feito e as trocas de cenário que impressionaram de verdade. Estes foram os pontos altos da peça.

Já a garota que fez a Eliza não convenceu. Nas músicas que exigiam mais, como a própria "Wouldn't it be loverly" e "I could have danced all night" me pareceu que ela não alcançou os tons. E eu ouvia pessoas dizendo com muita convicção "Nossa, como ela canta bem!", e até entendia porque, pelo padrão deles, exemplo de boa voz feminina é Ivete Sangalo, mas quem já ouviu alguma ária de "Die Entführung aus dem Serail" sabe o que significa um padrão alto de vocal feminino. Tudo bem, comparar Mozart a um musical é covardia, mas basta ouvir a própria Julie Andrews cantando as mesmas músicas na versão da Broadway e fica fácil perceber o que significa cantar bem.

O personagem Freddy, que tinha uma das árias (posso dizer ária?) mais difíceis - pelo menos a que eu acho mais difícil, me baseando em algumas horas de tentativas frustradas de cantá-la no banheiro -, "On the street where you live", não agradou também. Não cantava mal, mas o ator que o interpretou tinha tristemente o timbre de voz de um dublador da Disney. Não é um defeito, eu sei, mas se eu fechasse os olhos, poderia jurar que quem estava cantando era, tipo, o Nemo. Foi difícil para meus ouvidos, que já ouviram esta mesma música ser cantada por Nat King Cole.

O ator que interpretou o Higgins usou um sotaque timidamente afetado, como se isso indicasse distinção, mas só ficou esquisito. Rex Harrison, na versão da Broadway e de Hollywood, conseguiu passar uma superioridade arrogante, enquanto o ator brasileiro só conseguiu transmitir petulância. Outra questão é que o personagem de Higgins no musical não deveria cantar, apenas entoar, para indicar sua personalidade racional, mas na versão brasileira, ele exagerou na melodia. Já o ator que interpretou o Alfred Doolittle praticamente ditou suas músicas, mas deveria reproduzi-las como um barítono. As músicas "With a little bit of luck" e "I'm getting married in the morning", principalmente esta última, sem as esticadas graves do Stanley Holloway ficaram sem graça. E ambos não conseguiram alcançar o carisma que os papéis necessitavam. Uma pena.

E o andamento estava rápido demais, o que estragou todas as cenas cômicas. Todas as tiradas foram ditas num tempo errado. Deram a impressão de que estavam com pressa e não conseguiram atuar com naturalidade. Teve momentos em que a velocidade atrapalhava ao ponto da confusão, principalmente no começo, quando os personagens estão reunidos em frente a um teatro onde foram assistir Fausto de Wagner (e não Aída de Verdi como disseram no palco). E senti que atropelaram várias partes do baile da rainha. Ficou estranho.

E percebi, finalmente, que eu estou no ramo errado. Vou fazer teatro. Brasileiro é muito fácil, muito sorridente. Vai ao teatro com o único objetivo de aplaudir. Eu vou ao teatro para assistir uma peça; caso seja boa, eu aplaudo, caso contrário, não. E esta não era uma boa peça. Teve uma boa produção, mas pelo valor que gastaram, deveria ter sido muito melhor. Por enquanto, a melhor opção em São Paulo ainda é o Theatro Municipal, onde você assiste músicos realmente bons, em lugares melhores e pela metade do preço.

Eduardo Mineo
São Paulo, 30/4/2007

 

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