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Quinta-feira, 24/5/2007
Chiquinho Inteligente
Elisa Andrade Buzzo

Ele está em todas. Ou melhor, está e não está, pois sua onipresença é tão certa quanto sua ausência. O grande público ainda o ignora. Clown triste e altivo, fará rir, inspirará ódio, compaixão? Oxímoro mor, busca reconhecimento, mas ostenta leve desprendimento pela obra literária. Eis aí Chiquinho Inteligente, esta nossa personagem síntese.

O sonho de ser escritor começou cedo na vida do pequeno Francisco. Vivia cercado de livros desde a tenra idade. Lia os títulos mais abaixo na estante, onde sua altura alcançava. Foi uma época de muitos enredos rocambolescos, livros de parapsicologia, sobre o ocaso de Atlântida e a origem dos sonhos - Até que o sol se apague, O fenômeno UFO, Eram os deuses astronautas?, Um "toc" na cuca. Clássicos de outra época, best-sellers ensebados, títulos aos quais seus pais já não davam lugar de destaque na estante, restando o porão da primeira prateleira.

Era de se esperar que Chiquinho crescesse, virasse um latagão. Mas não seguiu a linhagem paterna, tendo abandonado cedo os livros das prateleiras mais altas. Trata de dar uma chaleira na máquina de escrever elétrica (onde datilografava seus primeiros manuscritos e praticava o plágio, copiando trechos dos 1001 Dálmatas) ao ganhar do pai um MSX da Gradiente.

Com o passar dos anos e das tecnologias, rato velho de BBS em tempos de internet e banda larga, tornou-se adepto dos blogs literários. Há quem diga que foi o primeiro a vender o peixe da literatura confessional em primeira pessoa do particípio (assim chamada porque os internautas eram convidados a participar da vida do moço). A idéia que Chiquinho teve foi simples, ainda que demorada. Se a questão a ser respondida era: sobre o quê posso começar a escrever?, a solução aparecera ao se lembrar de O Quinze, obra pinçada do alto da estante. Como era possível alguém conceber uma narrativa bem escrita e envolvente com apenas 17 aninhos, impulso para notoriedade e respeito como escritor? Foi então que Chiquinho Inteligente deu uma de Rachel de Queiroz e começou a rascunhar sua realidade urbanóide.

Hoje, em plena maturidade, projeto de celebridade, Chiquinho Inteligente sai nas colunas sociais mais prestigiadas e influentes do país, nas revistas dos bairros elegantes da cidade, é convidado de honra dos festivais e festas literárias badalados do Atlântico Sul. Como ele conseguiu tamanha projeção? Ninguém sabe ao certo, nem ousa palpitar. Talvez um charme cultivado, auto-estima nas alturas, fadiga mental dos editores.

Vira e mexe aparece em algum programa de tevê madruguento. Mas, por que você escreve? pergunta sobriamente o apresentador. Eu escrevo pra não morrer. Então você escreve pra se manter vivo? Sim, quer dizer, não. Não é nada físico, eu não ganho dinheiro com isso de escrever, entende?

Faz pose de modelo, pois hoje não basta ser escritor, tem que ser escritor-artista, escritor-palestrante, escritor-ator-de-cinema, escritor-designer-ilustrador, escritor-profissional-liberal, escritor-blogueiro, escritor-crítico-editor. Só não dá pra entender como dá tempo de escrever (bem) com tantas atividades... realmente, é um verdadeiro milagre o escritor escrever! Não dê uma de Machado de Assis, Chiquinho. Arranque este monóculo. E esse azedume de Lima Barreto? Tire a casaca. Entorne umas. E põe alegria nessa cara linda, que um sorriso vale mais do que mil palavras...

Fotos, imagens em geral, são difundidas na imprensa ou nos fotologs, componentes importantes ao novo escritor da era internet total. Na orelha do livro, a foto já não traz mais a máquina de escrever à la Danielle Steel, mas o teclado da labuta sudorífera madrugada adentro, do catar letrinhas na sopa experimental da era digital.

Pois escritor que é escritor não se escraviza num blog, nem em offset, muito menos gráfica rápida. De alguma forma, ele acontece. A conjunção dos astros é determinante na carreira meteórica, por assim dizer, de um autor. Acredite, Chiquinho, acredite. E ele crê mesmo. Pois você, mesmo obscuramente, e de forma canastrona, é a bola da vez. A vida vai levando, as situações vão se configurando num misto de paciência e nascimento virado pra lua. Saiba que o escritor, antes de tudo, é um persistente.

E Chiquinho, cão corredor, galga posições nos melhores suplementos, jornais, revistas literárias e de cultura do país. Por que não cavucar um espacinho nas revistas de celebridade e auto-ajuda, levando aos leitores a leveza do texto literário autêntico como pensata semanal? E as publicações do exterior, logicamente, pois é no mínimo chique ser publicado fora, nem que seja na banca do zé da esquina, estender tentáculos em todos os oceanos, ser linkado por blogs nunca dantes navegados.

Deveras se acha muito esperto... e ele realmente é, só que acaba se esquecendo de que o sol está aí para todos, embora possa queimar. Afinal, por mais que digam que há espaço de menos para a literatura, é a falta que irá gerar o gradiente inverso e, logo, por meio de um processo de difusão simples, irá se estabelecer o equilíbrio natural de todas as partículas elementares do universo.

A vida, literária ou não, é uma sucessão de fatos, lugares na hora certa, hora certa no lugar certo, pessoas certas no lugar e hora certos, simpatias, empatias. Mas fique longe das antipatias, Chiquinho, estas não te levam a lugar algum, a não ser que queira trocar meia dúzia de sopapos. Mas come, come tudo o que puderes, e esquece este papo, e me enfia os talheres.

Pois se a dúvida for qual veículo escolher ou privilegiar, seja livro ou internet, a resposta para Chiquinho é simples. Invista nos dois e com o que lucrar mais, tanto melhor. Mais valem dois pássaros nas mãos, ambos convergindo num único animal híbrido - o livro em sua dureza metálica: objeto definitivo, desejável, mercadológico, por que não? - o blog: maleável, propagando sua escrita aos quatro cantos, fazendo menção à obra impressa, influenciando sua maneira de escrever para sempre.

E por que seria diferente, se Chiquinho está em todas as frentes, mirradas ou em seara dourada? Depende da maré. Publicou seu livro de estréia - fragmentos, poeira estelar da blogosfera - em tiragem tímida, se bem que expressiva, pela Paperback. Borda canoa, numa reverência aos cadernos verdes de caligrafia do prézinho. Querem cartão de visitas, digo, primeiro livro, melhor que esse?

Anos depois, turbinado por gorda onda, recebeu um convite suculento. A Hardcover Associated Publishers não lhe exigiu um tostão para inflar, imprimir e distribuir a nova coletânea; design de ponta. E ainda acaba de vender os direitos de tradução para o neo-aramaico, o chinês tradicional e o javanês (acabo de receber um e-mail eufórico de Chiquinho com esta notícia). Dá-lhe.

Enfim, o próximo passo (ou cartada, diriam os doloridos) de Chiquinho Inteligente é criar um pseudônimo. Necessário ser algo de bom agouro, tipo Pé de Coelho, Ferradura Bem Relacionada. Depois, descoberto o gênio da obra - ele próprio - resta colher os louros da vitória, da premiação, do sonho realizado...

Elisa Andrade Buzzo
São Paulo, 24/5/2007

 

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