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Sexta-feira, 8/6/2007
Guia para escrever bem ou Manual de milagres
Ana Elisa Ribeiro

Qualquer pesquisa em livrarias virtuais dá conta de que existem vários guias e manuais cujo subtítulo promete ensinar os "pulos do gato" da boa escrita. Escrever bem é algo da esfera do mito. Coisa mais complicada, até porque, dizem as más línguas, nosso idioma não é lá dos mais fáceis de aprender. Dominar então, nem pensar. Coisa para poucos, escolhidos, messias ou anticristos. Sabe lá que tipo de reza essas pessoas fazem para aprender onde pôr as vírgulas. Ou o que aprendem que as leva a não confundir respiração com sintaxe. Ainda mais maluco é pensar quem lhes disse como empregar regências estranhas à linguagem oral. Mas isso não fica assim.

Os livros sobre como escrever bem são boas tacadas editoriais. Trata-se de um material que vende relativamente muito, não assume grandes responsabilidades e não tem "erro", quer dizer, não se pode dizer que um autor de um desses guias não tenha tentado aproximar o leitor do éden gramatical.

Para a editora, manuais do tipo "escreva melhor sem grandes esforços" vão atingir especialmente estudantes e candidatos a cargos públicos. São compradores/investidores, desses que pagam quaisquer vinte contos para obter a chave do sucesso lingüístico. E está barato. Passando no concurso da Polícia Federal, vinte mangos não são nada. Depois de conseguir concluir a redação e ser aprovado, é só vender a obra num sebo ou dar para um sobrinho vestibulando.

Já os avaliadores de redações sofrem. Êta profissão sofrida essa de ler mil, dois mil, cinco mil, dez mil textos ruins, igualmente ruins. Ou ainda textos iguais, até porque foram alinhavados pelo mesmo adestrador. Escrevam três parágrafos, nesta seqüência assim ó: introdução, desenvolvimento e conclusão. Não dêem opiniões controversas e não discordem dos temas propostos.

Os candidatos saem das provas satisfeitos com o tema que "caiu": aborto, tabagismo, violência. Haja criatividade para escrever sobre isso sem cair na mesmice movediça. Falar o quê sobre tabagismo? Aposto mil reais que qualquer um aqui sabe esboçar os pontos prováveis de 9 entre 10 redações antifumaça. Aposto mil e quinhentos que todo mundo imagina o que dez mil estudantes escrevem, nos vestibulares, sobre aborto. Ah, não posso passar batido pelo tema da violência. Alguém adivinha quais são os exemplos dados pelos "autores" dos textos?

Mas é preciso admitir que é difícil. É difícil mesmo escrever. Não em português, mas em qualquer língua. Um dos motivos para essa relação complicada é que a escrita é uma tecnologia inventada. Não nascemos com lápis e teclas previstos no DNA. É sofrido, o esforço é maior do que o de aprender a falar, que nos parece tão inevitável.

E quanto mais a gente escreve, mais a gente escreve. Não adianta só ler. Se ler muito fosse o único investimento para escrever bem, o segredo do sucesso estaria esclarecido: osmose. Imaginem que beleza ler a coleção completa de Graciliano Ramos? Brotariam nas folhas de papel textos de alta concisão e precisão. Talvez seja o que falta nos textos de muita gente.

Ítalo Calvino, o professor italiano, dizia que entre as seis propostas para este milênio estava a concisão. Bravo! E concisão não é, para ele, só ser curto e grosso. Ser conciso é ser preciso. Dizer a coisa justa, sem embrulhar em papel celofane nem fazer rugas no texto.

Texto enrugado, chama o Renew pra ele
Para compreender melhor as relações entre usos lingüísticos e poder é preciso estudar um pouco. Começar por um livrinho clássico de Maurizio Gnerre pode ajudar. Linguagem, escrita e poder é o nome da obra. E é claro que muita gente vai se lembrar dos "jargões" ou das linguagens que alguns grupos elegem para se diferenciar (distanciar também) dos demais, pobres mortais.

Por que razão meu médico não pode me explicar a doença que me afeta de um jeito que eu entenda? Por que ele tem que agir como se estivesse num congresso especializado? Por que meu advogado não me diz logo que fui condenada? Ou por que razão alguém precisa traduzir a sentença do divórcio? O problema é o poder.

Textos deveriam ser escritos para serem entendidos. Deveriam? É claro que nem todo mundo pensa assim. Há verdadeiras obras-primas da obscuridade em livros famosos, de gente conhecida, bambambãs que até parecem estar dizendo algo muito impressionante. Mas prefiro não colocar nenhum trecho aqui. Sei lá, depois me processam e eu não consigo entender os autos? Cruz-credo.

Um documentário chamado Coruja mostra no sambista Bezerra da Silva uma espetacular percepção dessas coisas. Diz o músico que, lá no morro, eles criaram uma linguagem pra "dotô" não entender. Era uma espécie de vingança. Está lá, nas melhores aulas de Sociolingüística. Só que na prática. O documentário fica disponível no PortaCurtas, na Internet, para quem quiser ver.

Manuais milagreiros?
Mas não é que alguns manuais são consistentes mesmo? Estou aqui com dois nas mãos. O primeiro é das jornalistas Dad Squarisi e Arlete Salvador, ambas do Correio Braziliense. Para quem lê os jornais dos Associados, as duas são figurinhas presentes. Espécie de Pasqualas das alterosas ou do Planalto Central. Só não são tão badaladas porque não estão no Eixo, mas têm livros e colunas em jornais. O livro A arte de escrever bem — Um guia para jornalistas e profissionais do texto tem público-alvo explícito, mas tenho cá minhas dúvidas sobre sua eficácia. A obra aponta, mui superficialmente, formas de escrever com clareza e objetividade. A idéia é abordar gêneros de texto não-literários (eis aí um tema complicado: é possível aprender a escrever literatura?).

A "pirâmide invertida" do jornalismo é defendida pelas autoras, com argumentos interessantes. Mais divertida ainda é a crítica que elas fazem ao jornalista Ricardo Noblat, que tem um livro na mesma editora (A arte de fazer um jornal diário). Parece que Noblat defendia um texto menos travado em jornalismo, mas a coisa não era bem assim.

Os temas giram em torno não da arte, mas dos macetes que podem levar alguém a enganar bem quando o assunto é texto: preferir frases curtas, palavras simples, formas positivas, voz ativa, evitar a vaguidão e os adjetivos, buscar a concisão, a clareza e a legibilidade. Eis a palavra-chave: legibilidade. Deixar que as pessoas penetrem o texto, entendam, entrem, com vidros transparentes. Pelo menos em relação ao texto informativo.

O único problema que percebo no livro, e grave, é que as autoras partem de um pressuposto muito complicado: o de que a escrita é reflexo do pensamento, está colada nele. Sendo assim, quem não escreve bem, não sabe pensar. Aí mora o perigo. Muito perigoso mesmo. Se fosse assim, estaríamos ainda piores. Mais uma vez, é preciso estudar. Muitos lingüistas já descolaram o pensamento da expressão escrita. É sabido também que a organização do bom texto escrito demanda mesmo uma certa capacidade de organizar idéias, mas afirmar que quem escreve mal pensa mal é como dizer, então, que analfabetos e povos ágrafos são desordenados e incapazes na linguagem. Não dá.

Já a obra É possível facilitar a leitura — Um guia para escrever claro, das lingüistas Yara Liberato e Lúcia Fulgêncio, é uma verdadeira aula de por que essas dicas de redação podem (ou não) ser válidas. Com argumentos e exemplos tirados de pesquisas consistentes, elas mostram, com trechos de textos informativos, o que pode ser péssimo e o que pode ser ótimo para melhorar a compreensão de um texto pelo leitor, aumentar a legibilidade. Junto com o lingüista Mário Perini, elas cruzam o território da língua escrita dando dicas muito parecidas com as de Squarisi e Salvador, só que com a faca e o queijo na mão, a cobra e o pau, os dedos e os anéis.

Não sei se a obra funciona como um curso autônomo de redação, aí já é pesar demais. Mas certamente fica fácil entender por que as frases mais curtas são mais eficientes, por que intercalações podem atrapalhar a compreensão, por que palavras difíceis são obstáculos com arame farpado. Em vez de fazer uma pista de cooper, alguns escrevinhadores preferem o salto com barreiras para o leitor. É, porque o leitor salta, salta sim, mas faz um esforço danado.

Ambos os livros são da editora Contexto. Projetos gráficos semelhantes, títulos mercadológicos, a preferência pela palavra "guia", que certamente é uma escolha editorial. São guias mesmo, mas no de Liberato e Fulgêncio o caminho das pedras é bem mais iluminado.

Ana Elisa Ribeiro
Juiz de Fora, 8/6/2007

 

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