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Quarta-feira, 19/9/2001
EUA, Ano Zero
Daniela Sandler

Quando termino esta coluna, é segunda à noite. Há uma semana, nesta mesma hora, nenhum de nós sonhava com atentados de massa em Manhattan. Muita gente, nesses últimos sete dias, repetiu o bordão: "O mundo nunca mais será o mesmo". Pensando na minha noite de segunda-feira passada - na última noite daquela parte de nossas vidas - eu tento distinguir: algo de fundamental mudou? Se mudou, o que foi? Ou será que tivemos apenas a impressão de mudança?

Yara Mitsuishi

Por certo, vários fatos cotidianos mudaram. A programação de tevê, por exemplo. Na semana passada, quase todos os canais abertos dedicaram todo o seu horário nobre (das 18:00 às 24:00) e boa parte do resto do dia à cobertura dos ataques terroristas. A tevê parou: era ligar o aparelho e ser submetido ao ataque por todos os ângulos possíveis (e não apenas os das câmeras).

De quantas maneiras diferentes se pode cobrir o ataque terrorista? Quando as notícias perderam velocidade, as tevês não tardaram a colocar especialistas no ar, depoimentos pessoais, ou programas conduzidos por apresentadores irados vociferando contra os suspeitos do terror.

No início, também me rendi ao vício. Nada de ficar longe de notícias; e, quando estas cessavam, a tevê não parava de derramar estímulos sensoriais e nervosos para excitar ou comover os ânimos. Será que o público gosta? Deve ter gostado, para alimentar a decisão que todas as redes públicas tomaram de adiar a estréia das novas temporadas de seus programas principais (comédias, seriados etc.) por uma semana.

Na ideologia reinante, a repetição monotemática das tevês serviu para reforçar o caráter de "divisor de águas" do ataque, para dar ainda mais grandiosidade ao evento e para intensificar o sentimento solene em relação ao futuro do país. Nós, espectadores, não fomos simplesmente bombardeados pela cobertura hipertrofiada do atentado: fomos também cortados do resto do mundo. Quem confia em tevê aberta para ter notícias internacionais ficou sabendo apenas que tal ou tal país manifestou apoio aos Estados Unidos ou que, na Palestina, alguém comemorou o ato terrorista.

Não que eu não tenha sido afetada pela tragédia, muito pelo contrário. Mas chegou uma hora em que a obsessão pelo tema começou a incomodar, oscilando entre o masoquismo voyeurístico (testemunhos pessoais feitos para arrancar lágrimas) e uma insistência mórbida nas cenas de horror (avião batendo, prédio explodindo, gente correndo), ecoada pelas tomadas ao vivo do esforço de limpeza dos escombros, devidamente explicadas pelo repórter: "Mas que desolação... que destruição".

Para completar o clima apocalíptico, os noticiários polvilharam análises econômicas, todas pessimistas: em suma, diz-se que os Estados Unidos, que já estavam mesmo à beira de uma recessão, agora não escapam. Não que não seja uma análise razoável - o modo, porém, de enquadrá-la e transmiti-la faz parte de uma espécie de lavagem cerebral por repetição. Sem diminuir a importância do ocorrido, o fato é que a vida continua, e, tanto aqui nos Estados Unidos como no resto do mundo, não necessariamente gira em torno da tragédia.

Capitalizar com a tragédia, neste caso, foi mais do que uma questão de pontos no Ibope. Muito já foi dito, em relação a este episódio, sobre a parcialidade da cobertura de tevê norte-americana e como isso agrava preconceitos e ignorância. Não vou chover no molhado. Infelizmente, o problema não é só esse.

A representação do atentado na mídia - que ao mesmo tempo reflete e forma a opinião pública - foi feita de forma extremamente autocentrada e grandiosa (eufemismos para os palavrões "egocentrismo" e "megalomania"). Agora, Bush prepara alianças dentro e fora do país. Não simplesmente para encontrar e punir os culpados pelo atentado; não apenas para atacar os estados que os abrigam. A guerra é para nada menos que "acabar com todos os estados que apóiam o terrorismo". A frase estava lá, estampada entre aspas na manchete do jornal. Nem ao menos a sutileza de dizer, por exemplo, "lutar". O termo usado foi "acabar". Extinguir, exterminar, destruir - o que isso significa? Abstratamente, derrubar regimes opressores como o Taleban pode não parecer ruim. Concretamente, "bombardear o Afeganistão até que volte à Idade da Pedra", como vem sendo dito, é muito diferente.

Agora, a segunda parte da frase: "todos os estados". Todos. De perseguição a Osama bin Laden a guerra ao Afeganistão a guerra a meio mundo num piscar de olhos. Quantos são os países que podem se encaixar, ao sabor da necessidade política, nessa definição? Quais são? E por que os Estados Unidos se vêem no direito de "acabar" com todos eles?

É esta sensação de guerra mundial, de evento da maior importância para o qual todos os sacrifícios são válidos (inclusive, como já declarado, a morte de combatentes norte-americanos), e, sobretudo, de isenção ética, como se a grandeza dos fatos desculpasse suas implicações morais e humanísticas, enfim, é tudo isso que a cobertura televisiva condensou e produziu por aqui.

Diante do clima de exceção histórica alimentado pela cobertura intensiva e exagerada, é de esperar que boa parte dos espectadores esqueça seus pudores humanistas e aceite a eventualidade de uma guerra sem sérias fricções políticas.

Se considerarmos o quanto a tevê permeia a vida, as fontes de informação e a formação intelectual dos norte-americanos, a conta resultante é evidente: a tevê e suas versões on-line estão preparando cuidadosamente o terreno para que a escalada do governo Bush rumo à guerra seja a mais suave possível.

A CNN.com já ostenta a chamada "New War" (Nova Guerra) como título geral de todas as reportagens relacionadas ao atentado. Nada mais natural que isso para suceder a chamada anterior, "Os EUA sob ataque". Se os pacificistas daqui ainda sustentam alguma esperança de que Bush evite a guerra, creio que esta é uma batalha perdida.

Como muitos por aqui notaram, por muito menos os Estados Unidos entraram em guerra contra outros países. Se isso lhes serve de fácil justificativa para uma nova empreitada, gostaria que ao mesmo tempo servisse como aviso histórico. Mas ninguém por aqui quer se lembrar do vexame do Vietnã ou da Coréia - e não falo apenas do vexame militar, mas principalmente do vexame humano, moral.

Essas duas guerras vagam enevoadas na memória coletiva como ocasiões de injustiça extrema e unilateral contra os Estados Unidos. Exatamente no mesmo compasso dos bordões marciais de agora. Sob os aplausos do público.

Eu, de minha parte, não poderia ter ficado mais feliz ao ver que os velhíssimos episódios de Friends que a ABC reprisa todo dia estavam de volta quando liguei a tevê ontem na hora do jantar.

A arte imita a vida... por acaso

Não foi só a tevê que teve de mudar seu calendário. Hollywood também mudou de planos depois da tragédia. Um executivo, em entrevista, afirmou que "ninguém quer dar a impressão de que a indústria de cinema estaria fazendo lucro em cima do atentado". O curioso é que, desta vez, a impressão seria devida a infelizes coincidências. O novo filme de Schwarzenegger, que estava para estrear neste mês, contava a história de um homem "comum" que perdia a mulher e o filho num atentado terrorista nos Estados Unidos e, movido por dor e vingança, se embrenhava na caça ao cobiçado e poderoso terrorista. A estréia foi suspensa indefinidamente, os cartazes do filme devidamente retirados, os trailers recolhidos (cheguei a ver um deles, há duas semanas). Outro filme-problema é uma comédia sobre - adivinhem - um seqüestro de avião. Estrearia também em setembro; agora, só no ano que vem.

Gripe do atentado

Na semana passada - notavelmente, depois da terça-feira -, mais uma gripe se espalhou por aqui. Essas epidemias são comuns quando o tempo muda, como foi o caso na última semana, em que esfriou de repente. Se fosse no Brasil, a gripe já teria algum nome alusivo ao acidente com uma explicação engraçadinha. Eu, de fato, estava queimando em febre, minha cabeça explodindo de dor de cabeça, e acabei desabada sobre a cama. Também espero que o vírus não seja um agente de terrorismo biológico!

Mas aqui nunca vi ninguém colocar apelido em gripe. Há mais ou menos um mês, um amigo meu, brasileiro, estava tentando explicar nosso hábito a um casal norte-americano. Um pouco perplexos, tentavam entender o costume e a graça da brincadeira. Acho que o fato de não saberem quem é a Tiazinha não ajudou muito...

Daniela Sandler
Rochester, 19/9/2001

 

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