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Sexta-feira, 13/7/2007
Ascensorista para o arranha-céu da literatura
Vicente Escudero


Enki Bilal


Naquela tarde em que recebi um e-mail solicitando indicações de livros para um leitor iniciante, não consegui trabalhar em mais nada. Fazer escolhas e descartar textos são tarefas que corroem a atenção de qualquer aficionado por literatura. "Como devo escolher?", "Devo selecionar por estilo?", "E hierarquia? Tenho que escolher entre os melhores?", "E se o tal leitor não gostar?".

Perdido entre tantas perguntas, deixei a tarde passar, espirrando o tempo todo em virtude de um resfriado que veio devagar e se instalou, mais pela baixa umidade do ar do que pelo meu descaso. Dezenas de fantasmas, alguns vivos, outros mortos, enquanto segurava meu nariz para que não voasse pela janela cada vez que espirrava, clamavam quase em uníssono ao pé do meu ouvido: "Me escooolha...!". O papel em branco na tela do monitor, estorricado pelo reflexo do laranja dégradé vindo do horizonte que se dissolvia, lá fora, era atordoante.

"Até agora não escolhi nada!" - pensei.

O cansaço veio para derrubar meus ombros, simultaneamente ao palpitar acelerado do meu coração. Minhas pernas e braços relaxaram sobre a cadeira. Uma última olhada pela janela revelou o horizonte negro engolindo o fim oblíquo de um dia de outono. Estava sozinho?

Tudo parecia dividido. Apesar de ouvir um som repetitivo e abafado, quase um mantra, ecoando de um templo religioso próximo daqui, não enxergava mais nada. Minha vista alcançava a dimensão da cegueira; em instantes também fiquei surdo.

Num espaço curto, dentro do que parecia ser uma sala, surgiu um velho caminhando calmamente através da massa escura. Seu rosto era quadrado, enigmático. Vestido sobriamente e se apoiando cuidadosamente em uma bengala com incrustações de prata, sua outra mão desapareceu no nada e seu braço balançou, sugerindo abrir uma porta. A resposta a minha dúvida, escondida nas rugas do velho, veio em forma de uma passagem sem moldura aberta por ele, revelando uma paisagem distante, um cenário bucólico e eufórico. O velho, desconfiado da minha relutância em seguir através dela, esboçou uma reação:

- Pode passar, é seguro.

Retomei a intuição instantaneamente e absorvi as simetrias do local. Sem hesitar mais, passei pelo portal, que em seguida desapareceu.

A imagem não passava de um simulacro. O horizonte azul com morros verdes cintilantes, parecido com o papel de parede do computador, não existia. A vista, em um passe de mágica, revelou-se simples: uma cidade distante, ilhada em uma planície enorme, alcançável a pé.

Independente, um prédio destoava entre as construções contemporâneas imitando frutas. Cercado por edifícios em forma de carambola, melancia e jaca, o arranha-céu atravessava as nuvens mais baixas sem deixar pista do seu cume.

"É para lá que eu vou!" - pensei.

Depois de meia hora de caminhada pela planície, sem interrupções, entro na cidade e sigo a enorme silhueta. Os habitantes não tomaram conhecimento da minha presença e permaneceram distantes; apenas nos intervalos do mau humor cotidiano alguns olharam desconfiados. Encerrei a caminhada na entrada do edifício e observei com cuidado o local. Sobre o arco da entrada, a identificação do prédio grudada em letras de aço escovado: A L. Não tinha a menor idéia do que estava fazendo ali, nem imaginava o significado do passeio. Apenas havia seguido a minha intuição sem decidir nada. "Por que não segui até a melancia?"

- Senhor? Está atrasado! Entre na fila, por favor.

- Pois não!

Por detrás do largo balcão de madeira escura da recepção, uma funcionária do prédio, em tom protocolar, indicou o local onde eu deveria aguardar, interrompendo a minha reflexão: "Mas aguardar o que, afinal?". Em seguida, fui chamado.

- Aqui está seu bilhete de entrada, senhor. Dirija-se ao elevador 5 do corredor 7 e aguarde o ascensorista chamá-lo. Não dá para errar, é só seguir este corredor principal e virar na sétima entrada à direita. Pró-xi-mo!

Tomei o rumo que ela indicou e que minhas pernas, por sorte ou não, seguiram. Sem espera, o elevador chegou no instante em que fixava os olhos no painel indicador de sua posição. A porta se abriu e uma ascensorista cordial estendeu a mão, pedindo o bilhete.

- Hmm, o senhor é um iniciante então? Já faz algum tempo que nenhum de vocês aparece por aqui.

Sem conseguir controlar minha iniciativa, entrei no elevador silenciosamente: "Mas que raios estou fazendo neste lugar?". A porta fechou e a ascensorista magra, com cabelos castanhos e compridos, e uma postura elegante, levantou o chapéu preso por um cordão entre o queixo e a garganta, num gesto de cortesia.

- Subindo...

- Para onde você está me levando?

- Não se preocupe... você terá uma surpresa agradável.

Detalhes dourados em espirais de madeira decoravam as extremidades da apertada cabine de mármore, um tapete persa com desenhos indecifráveis ocupava o piso sob o pequeno banco, de onde a ascensorista comandava.

- Primeiro andar! Edgar Allan Poe, ficção policial, A carta roubada, mil oitocentos e quarenta e quatro!

A porta do elevador abriu, revelando uma sala com móveis antigos, todos em madeira, onde Auguste Dupin, detetive, conversava com D. sobre o roubo de uma carta. Acompanhei a solução do crime e a reviravolta moral no final. Peguei o livro que estava encima da poltrona. O elevador surgiu em um átimo. Voltei para dentro dele.

- Então, pegou o livro? - disse a ascensorista.

- Peguei! Para onde vamos agora?

- Acalme-se... por que a pressa? Você não vai sair daqui tão cedo mesmo...

- Como eu não fui visto pelas pessoas da sala?

- Não se preocupe com isso. Apenas entre, assista, pegue o livro e volte.

Um minuto depois o elevador parou novamente.

- Segundo andar! William Shakespeare, drama, Romeu e Julieta, mil quinhentos e noventa e sete!

Saí do elevador direto para um baile de máscaras, onde Romeu conheceu Julieta e teve início o amor proibido. Coletei outro livro, sobre uma mesa da sala da casa de Capulet. O elevador surgiu em frente a uma grande janela com as cortinas amarradas. A ascensorista fez sinal para que eu entrasse.

- Queria levá-lo até a cena da declaração de amor na sacada mas não há tempo. Vamos para o próximo.

- Ok. Você comanda! - disse.

Comecei a sentir o calor entrar pelas paredes do elevador. Instantes depois a cabine parou e se abriu no que pareceu ser os fundos de um casarão em Manaus. Deixei a cabine, caminhei por entre algumas árvores até uma pequena casa onde um garoto, o filho de Domingas, estudava solitário. Ouvi uma briga no casarão, peguei um livro na estante do rapaz e fui ver o que acontecia do lado de fora. No meio do caminho a ascensorista junto ao elevador.

- Nossa, como você está suado! Esqueci de avisá-lo: Terceiro andar, Milton Hatoum, dois mil! Continuemos ao quarto andar.

Em segundos o elevador estacionou. Desta vez ela não errou.

- Quarto andar! Machado de Assis, realismo, A cartomante, mil oitocentos e oitenta e dois.

A porta se abriu e a maresia de um Rio de Janeiro onde as carruagens ainda serviam de táxi grudou em meu rosto. Uma carruagem caída no leito da rua e Camilo se dirigindo até a casa de uma cartomante chamaram a minha atenção. Segui os passos dele até a sala do templo da profetisa e encontrei outro livro. Retornei para o corredor de entrada, a cabine reapareceu na escada que levava até a rua.

- Estamos atrasados. Depressa! - disse a ascensorista.

Entrei no elevador e coloquei o último livro sobre os outros que coletei. Do teto do elevador começou a ressoar uma música dos Beatles. A ascensorista acompanhava o ritmo com as pontas dos pés num sapateado desengonçado.

- Quinto andar! John Le Carré, espionagem e ficção, O espião que saiu do frio, mil novecentos e sessenta e três.

Deixei o elevador e caminhei cortando uma leve neblina, por uma rua fechada com portões e sentinelas de ambos os lados. O cenário era a Berlim dividida. Logo na minha frente um homem pedalava uma bicicleta, após passar pela revista dos guardas do lado oriental. Entretanto, sem nenhuma razão aparente, os democráticos começaram a perseguí-lo e fuzilaram-no. Alec Leamas acompanhava através dos binóculos a saída do espião, de dentro da guarita do lado ocidental, sem acreditar que aquele desfecho trágico pudesse acontecer. Encontrei um livro dentro da jaqueta do cadáver. Antes que os guardas chegassem, o elevador ressurgiu: "Essa foi por pouco!".

- Assim funciona a espionagem - disse a ascensorista. Você não viu o caso do espião russo Alexander Litvinenko morto há alguns meses na Inglaterra?

- Acompanhei. Não há limites nesse negócio!

- Sem dúvida. Prossigamos para o sexto andar...

- Sexto andar! Clarice Lispector, A maçã no escuro, modernismo, mil novecentos e sessenta e um.

O ambiente agradável de uma fazenda, com seus perfumes desconhecidos, tomou conta do elevador. Martim encontrava-se sentado em um canto da varanda, refletindo sobre a morte da esposa. Entrei na casa e encontrei outro livro na mesa da cozinha. Voltei para o elevador que aguardava por entre algumas árvores, um pouco distante da casa.

- Limpe seus pés antes de entrar, por favor. Não quero ter que limpar o tapete depois do expediente.

- Ok!

Raspei a sola dos sapatos num pequeno tronco morto. A ascensorista estava com pressa:

- Vamos!

As subidas e descidas estavam ficando demoradas. Desta vez o elevador, além da demora, chacoalhou forte várias vezes. Os livros se espalharam pelo chão e tive que juntá-los. Mas antes que terminasse de ajeitar a pilha, precisei sair novamente.

- Sétimo andar! Jack London, O apelo da selva, poema em prosa, mil novecentos e três.

A temperatura caiu subitamente fazendo com que meus dentes batessem como uma metralhadora, tamanho era o frio do Yukon. Quando olhei para a ascensorista ela já vestia uma jaqueta grossa e branca, com as extremidades felpudas, além de calça e botas.

- Tome rapaz. Vista esta outra jaqueta e esta calça.

Um biombo desceu do teto do elevador nos separando. Troquei de roupa rápido. A ascensorista, tremendo, abriu a porta. O vento e a neve invadiram a cabine soberanos. Olhei para fora e vi uma matilha em um acampamento, cercada por uma tribo de índios prestes a atacá-lo. Buck dormia dentro de um buraco na neve e John Thornton esquentava o jantar na fogueira. Assim que apareci entre as árvores, Buck rapidamente se levantou e correu até onde eu estava, deixando outro livro e retornando para a cabana gelada.

Mal conseguia enxergar a cabine do elevador no meio de tanta neve. Percebendo minha dificuldade, a ascensorista acendeu uma lanterna na minha direção, indicando o caminho. Segui os sinais, limpei a neve colada sobre a roupa e entrei.

- Pode tirar essa roupa para neve. Ela não será mais necessária.

O biombo desceu, novamente, junto com a minha roupa dobrada em um cabide. Depois de me vestir, aguardei a próxima parada do elevador.

- Oitavo andar! Juan Carlos Onetti, Contos Completos, mil novecentos e trinta e três.

Escuridão total na saída. Quarenta e sete portas em um corredor. Assim que decidi abrir uma delas, ouvi um barulho insistente, que parecia ser alguém forçando a abertura de uma janela, seguido por reclamações e desafios. Um sujeito de pijama descia uma escada armado com uma espingarda. Peguei um livro sobre a escrivaninha, voltei para o corredor e entrei no elevador tentando não atrapalhar o silêncio. A ascensorista aguardava com as luzes da cabine apagadas.

Dois trancos seguidos sinalizam que o elevador se moveu muito pouco. A ascensorista, desta vez acompanhada pela música de violeiros, anunciou na minha saída.

- Nono andar! Gabriel García Márquez, realismo mágico, "Só vim telefonar", mil novecentos e noventa e dois.

Mulheres caminhavam pela entrada do que parecia ser um hotel localizado no alto de um morro; as paredes de pedras brutas revelavam um ambiente pouco amistoso e sem pretextos. Maria seguia as outras mulheres que desciam do ônibus, debaixo de chuva, insistindo em encontrar só um telefone para ligar para seu marido mágico. Encontrei outro livro na caixa de correio do portão e segui para o elevador, que havia brotado atrás do ônibus.

- Quer um antitérmico? - disse a ascensorista?

- Não, obrigado.

Antes mesmo que eu me levantasse da nova arrumação da pilha de livros, a porta do elevador se abriu novamente e a ascensorista anunciou que a viagem estava acabando:

- Esta última visita levará você ao epicentro de toda a literatura ocidental. Voltaremos para a Grécia Antiga.

Em meio a um sorriso largo, a chegada:

- Décimo andar! Homero, Odisséia.

O teatro a céu aberto, cercado por colunas e ocupado por uma platéia numerosa, circunspecta como dificilmente seria vista hoje, apresentava a Odisséia de Homero. O poeta com sua máscara extravagante e sua mímica guerreira tratava do retorno de Ulisses para seu palácio, onde os pretendentes de sua esposa atormentavam sua família e destruíam a sua propriedade. Procurei o livro pelo teatro todo mas não o encontrei. Ao passar por detrás do palco, alguns espectadores apontaram para mim, fazendo com que a peça parasse. Corri assustado, sendo perseguido por dezenas de gregos ensandecidos.

"Droga, onde está a ascensorista? Estou perdido!" - pensei.

Corri por muito tempo, acompanhando a perseguição dos gregos por sobre os ombros. O horror parecia próximo demais mas meu desespero não me afastava. Na multidão, todos gritavam a plenos pulmões "Cérbero, Cérbero!!!" Depois de alguns quilômetros encarei o horizonte. A paisagem escureceu; tudo sumiu. Despenquei em um abismo negro sem fim. Uma voz alta e grave encerrou a queda.

- Tá pensando que vai sair vivo daqui, rapaz?

De olhos abertos, encaro meu chefe sob a luz fria do escritório:

- Toma essa aspirina aqui, rapaz. Quem sabe agora você não pára de dormir no trabalho?

Vicente Escudero
São Paulo, 13/7/2007

 

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