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Segunda-feira, 9/7/2007
Revisitar-se ou não, eis a questão
Pilar Fazito

Manual de crítica e autocrítica para autores iniciantes



A mulher que matou os peixes, de Clarice Lispector, foi o livro que mais me marcou na infância. Eu me senti a própria confidente da narradora. Fiquei tão tocada e comovida com a história que escrevi uma carta para a Clarice e pedi a minha mãe que a enviasse para a editora. Naquela hora, achei que havia descoberto o que queria fazer quando crescesse: escrever. Mas depois de uma semana de gozação dos meus irmãos mais velhos, ouvindo que a carta deveria ser entregue num centro espírita, o vexame tomou conta de mim e eu desisti da idéia. Desisti da idéia até o dia em que li Veludinho e encontrei a Martha Azevedo.

Eu devia ter uns dez anos quando a escritora de livros infantis Martha Azevedo Pannunzio apareceu na escola em que eu estudava, em BH. A turma tinha lido Veludinho, um clássico da literatura infantil brasileira, escrito em 1976, e deveria entrevistá-la. Era a primeira vez que eu tinha diante de mim aquele ser, até então implícito e etéreo, chamado escritor. Esse episódio me provou que, ao contrário de papai-noel e o coelho da páscoa, eles existem. Eles: os escritores. Essas criaturas que desovam no mundo um mundo de idéias e que fazem a gente entrar na cabeça de personagens e sentir na pele o que sentem.

Do papo com a Martha Azevedo, lembro-me até hoje quando ela falou da sua primeira experiência de escrita de um livro, ainda na adolescência. Era uma história sobre o mar que havia ficado inacabada. Alguém perguntou se ela não tinha interesse em retomá-la e acabar a obra. E ela respondeu que não. Segundo a autora, ela não era mais a adolescente que havia iniciado o texto e por isso não se sentia no direito de mexer nele.

Vinte anos mais tarde, descubro (um tanto atrasada, confesso), a literatura de Ivan Ângelo. No livro A face horrível, publicado em 1986, o mineiro de Barbacena faz o oposto de Martha Azevedo. Sem pudor nenhum, o autor retoma um conto que havia escrito 26 anos antes, logo no início da carreira. O texto que dá nome ao livro é apresentado, então, em três (ótimas) versões: a original, escrita em 1959; a comentada 26 anos mais tarde; e a alteração final, feita após os comentários.

Nessa experiência, Ivan Ângelo faz um exercício de revisão rigorosa da própria escrita. Um exercício delicioso que deveria ser leitura obrigatória de todo escritor iniciante. Não para que os escritores iniciantes programem uma revisão de seus textos para daqui vinte anos, mas para "abaixarem a bola" um pouco. Para aprenderem a ser mais humildes e aceitarem o fato de que por melhores que sejam seus textos hoje, ainda podem - e devem - aperfeiçoá-los com o tempo e a experiência.

Os comentários do Ivan Ângelo de 1985 são implacáveis e pedem dinamismo ao garoto de 1959. Para isso, manda cortar o eruditismo acadêmico; mostrar menos e sugerir mais, deixando elipses e lacunas para o leitor preencher; e, o mais bonito, sugere um final menos trágico. O final original não era ruim, mas resolvia-se abruptamente e de forma previsível, traduzindo o espírito juvenil do "ou tudo ou nada". O Ivan Ângelo amadurecido leva suas experiências para o garoto. É um exercício bonito, muito bonito. Como um paciente professor de natação que ensina um aluno estabanado a deslizar melhor sob a água em vez de lutar contra ela.

Entre o pudor de Martha Azevedo e o aprendizado de Ivan Ângelo, fico com o segundo. O argumento de não sermos mais quem éramos aos quinze anos serve também para um intervalo de tempo menor. No capítulo final, o autor já não é mais aquele que escreveu a primeira linha do romance. Ele deveria, por isso, deixar de rever o que escreveu e alterar trechos antes de publicar?

Escrever é como esculpir e, por isso, um escritor não pode ter pudor nem preguiça de ler quinhentas vezes o que escreveu, de melhorar algo aqui e ali, reescrever capítulos inteiros e retomar textos anos mais tarde. Na escrita, busca-se uma perfeição que a gente sabe que nunca será alcançada. E a graça não está na perfeição, mas nessa busca.

O exercício de revisitação do próprio texto em A face horrível é uma lição de humildade para muito escritor iniciante que não tem uma autocrítica bem desenvolvida.

A geração de novos escritores tem apresentado gente boa, mas também tem apresentado muita gente que ainda não chegou lá e que ainda não se tocou disso. Antes de pavonear por aí, enchendo a boca com expressões como "meu próximo livro", é preciso estar disposto a ouvir. É preciso procurar pela crítica de gente respeitável que está na estrada há mais tempo, avaliar os conselhos e acatá-los quando julgar válido, em vez de se fechar numa concha idílica ou cortar os pulsos ao menor sinal de orgulho ferido. E é preciso, sobretudo, revisitar os próprios textos de tempos em tempos para fazer um balanço de entradas e saídas e contabilizar a evolução da própria escrita.

O Ivan Ângelo de 1959 é ótimo. Mas o de 2007 é melhor ainda. Essa é a promessa de pelo menos quarenta e oito anos de aprendizado para os que começam a dar suas primeiras braçadas agora. Que venha o Pan-literário de 2055!

* Agradecimento a Sérgio Fantini, pela iniciação ao Ivan Ângelo.

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 9/7/2007

 

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