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Terça-feira, 24/7/2007
O Casal 2000 da literatura brasileira
Luis Eduardo Matta


Livia e Luiz Alfredo Garcia-Roza fotografados por Bel Pedrosa

Não sei, ao certo, as razões - uma delas talvez seja o fato de eu não ter me casado ainda -, mas a verdade é que sempre nutri uma certa simpatia por casais de escritores. E eles têm sido numerosos e expressivos ao longo das últimas décadas, dentro e fora do Brasil: Zélia Gattai e Jorge Amado, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant'Anna, Laura e Cícero Sandroni, Edla Van Steen e Sábato Magaldi, Faye e Jonathan Kellerman, Alberto Moravia e Elsa Morante (e, mais tarde, Dacia Maraini), e Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre são alguns deles. Nos últimos tempos, a tendência parece ter perdido fôlego; provavelmente por vivermos, hoje, uma época um tanto individualista, permeada por relacionamentos efêmeros e superficiais (não são todos, é claro), onde em lugar da cumplicidade e do diálogo, prevalece a cobrança, a incompreensão e a intolerância.

Por tudo isso, foi com grande interesse que, na segunda metade da década passada, testemunhei a aparição na nossa cena literária de um casal que, egresso do labiríntico universo da psicanálise, fazia, quase que simultaneamente, a sua estréia na prosa de ficção. Ambos os escritores, cada qual trilhando um caminho próprio na literatura, foram, no decorrer dos anos subseqüentes, auferindo, de forma lenta e consistente, reputação no mercado editorial e no imaginário dos leitores a ponto de, atualmente, ser praticamente impossível discorrer sobre a boa ficção brasileira contemporânea sem mencionar seus nomes: Livia Garcia-Roza e Luiz Alfredo Garcia-Roza.

Certa vez, anos atrás, durante uma palestra, uma senhora na platéia, numa vã tentativa de desqualificar o meu trabalho literário, afirmou que não lia livros escritos por pessoas com menos de quarenta anos, por julgar que estas não possuíam maturidade o bastante para interpretar a realidade a ponto de reinventá-la na ficção. Era uma generalização grosseira (aliás, quase toda generalização é grosseira), mas não a levei para o lado pessoal e rebati a tese calmamente, a partir de duas argumentações: a primeira era a de que, muito embora eu acreditasse firmemente na tendência de, na maioria dos casos, os escritores escreverem melhor e com mais técnica, precisão e consistência à medida que vão envelhecendo, não necessariamente os livros escritos por jovens deveriam ser desprezados. Como exemplo, mencionei obras como Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector; Capitães da areia, de Jorge Amado e Os indiferentes, de Alberto Moravia, livros extraordinários, todos publicados quando os autores não tinham sequer trinta anos, que dirá quarenta.

A segunda argumentação era a de que, se por um lado publicar um livro muito precocemente pode ser temerário por conta da pouca experiência de vida do seu autor, o oposto - isto é, estrear na literatura depois da meia-idade - também oferece riscos, porque, neste caso, o autor poderá encontrar mais obstáculos para desenvolver sua técnica na escrita e lapidar uma voz própria, do mesmo modo que um adulto tem mais dificuldades de ser alfabetizado ou aprender um segundo idioma do que uma criança. Além disso, uma vez que ele já atravessara um considerável percurso de vida, provavelmente estará mais distante da matriz criativa, uma característica marcante da infância que a idade adulta, silenciosa e impiedosamente se incumbe de destruir, em nome da razão e da maturidade, que, a juízo de muitos, são incompatíveis com o saudável universo da fantasia.

Já li alguns livros de autores que estrearam na ficção depois dos cinqüenta anos e não gostei de uma boa parte. Era possível perceber que a maioria tinha intenções que não conseguiu realizar, por razões que não cabe aqui especular. Não é, naturalmente, o caso de Livia Garcia-Roza e de Luiz Alfredo Garcia-Roza que, desde os primeiros livros, demonstraram uma enorme intimidade com o processo criativo e, sobretudo, um notável conhecimento da seara ficcional pela qual cada um decidiu enveredar. Luiz Alfredo que, durante mais de trinta anos, foi professor de teoria psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro, chegando a publicar oito livros sobre psicanálise e filosofia, desligou-se do meio acadêmico na década de 1990 e resolveu dedicar-se exclusivamente à literatura policial. Seu primeiro romance, O silêncio da chuva, publicado no final de 1996, alcançou um imediato sucesso, tendo recebido os prêmios Jabuti e Nestlé no ano seguinte. Garcia-Roza rapidamente se tornou uma referência na ficção policial num país onde o gênero sempre foi menosprezado ou mal tratado pelos escritores e seus livros - sete ao todo - conquistaram uma legião de leitores fiéis. O mais recente, Espinosa sem saída (Companhia das Letras, 2006, 216 págs.), foi lançado no final de 2006 e é protagonizado pelo delegado Espinosa, um dos mais carismáticos personagens surgidos na literatura brasileira nos últimos anos. Titular da 12ª delegacia, na rua Hilário de Gouveia, coração de Copacabana, Espinosa é um policial civil de personalidade singular: morador do aprazível Bairro Peixoto, em Copacabana, é um homem ético, culto e de boas maneiras, apreciador de vinhos e de boa literatura, além de um legítimo flaneur. É durante as suas andanças pelas ruas de Copacabana e de outros bairros do Rio que, muitas vezes, ele desvenda aspectos obscuros dos casos que investiga, enquanto observa o movimento de pedestres, as vitrines das lojas e a arquitetura dos prédios. Luiz Alfredo Garcia-Roza criou uma literatura policial interessante onde, sem abrir mão da essência do gênero, dialoga com a crônica urbana e de costumes consagrada no Brasil pelas mãos de autores como João do Rio, Rubem Braga ou mesmo Rubem Fonseca em alguns momentos. Espinosa, além de delegado, é, indiretamente, também um cronista do Rio de Janeiro, registrando cenas da vida carioca, plenamente ajustadas à realidade.

Em Espinosa sem saída, o delegado - protagonista de seis dos seus sete romances -, se defronta com um caso aparentemente sem maior relevância: o assassinato de um indigente sem uma das pernas, no alto de uma ladeira sem saída, numa noite chuvosa. Ao levar a investigação a cabo, Espinosa penetra num vórtice de situações enigmáticas que culmina com um segundo assassinato - desta vez de uma psicanalista de classe média alta, Camila Bruno, encontrada morta, nua, em seu consultório, em Ipanema. Apesar de muito distantes um do outro e ocorridos em universos e circunstâncias totalmente distintos, ambos os crimes parecem possuir uma ligação e o delegado acaba se envolvendo numa trama de alta voltagem psicológica, onde os desvarios da mente, presentes em alguns personagens, desempenham um papel determinante no fio condutor da narrativa. De todos os livros de Luiz Alfredo Garcia-Roza, Espinosa sem saída é, junto com Perseguido, publicado em 2003, o mais, digamos, psicológico, onde o autor valeu-se de sua experiência com a psicanálise e a filosofia para dar os contornos necessários aos personagens e ao próprio enredo.

Esse mergulho nos meandros da emoção e da psique humana também está presente - e talvez com mais intensidade e dramaticidade - na obra de Livia Garcia-Roza que, assim como Luiz Alfredo, possui uma larga vivência psicanalítica, tendo, inclusive, clinicado por três décadas. Livia possui uma obra ficcional multifacetada e dinâmica, onde o ser humano é desnudado na forma de personagens imersos em dilemas e angústias ou defrontados com os absurdos e adversidades da vida. Seus livros registram aquelas simplórias e habituais, porém significativas, situações do dia-a-dia comuns a todos e as amplifica de modo que a reflexão acerca de nós mesmos e do nosso entorno torna-se inevitável: são momentos desagradáveis que as pessoas se encarregam de ignorar ou esquecer, reprimindo-as no fundo de um subconsciente atormentado; conflitos e incompatibilidades nas relações familiares ou amorosas; pequenos e aterradores flagrantes da difícil convivência humana; desejos mal-resolvidos; circunstâncias traumáticas da infância e da juventude que serão determinantes na personalidade do indivíduo quando adulto, e por aí vai. Livia Garcia-Roza trouxe para a ficção todo o seu conhecimento sobre a alma e a emoção humanas e sua prosa, embora leve e sem artifícios, é de uma profundidade desconcertante. Ler um livro de Livia é arriscar-se a vivenciar sucessivos insights e imergir em questionamentos. Isso tudo, aliado a um humor fino e sagaz, perceptível nas filigranas do texto, faz da travessia pela sua narrativa uma aventura estimulante e perturbadora, no sentido melhor.

Todos esses elementos estão fortemente presentes em dois livros de Livia publicados recentemente - um romance e uma coletânea de contos. O primeiro, Meu marido (Record, 2006, 188 págs.) que, antes que alguém pense, não é uma biografia romanceada do Luiz Alfredo Garcia-Roza, narra as agruras do casamento turbulento de Belmira (Bela) uma dócil jovem do interior e Eduardo Durand, um aloprado delegado carioca. Bela e Eduardo mantêm uma relação que, a juízo da sociedade, é bem-sucedida. Eles moram num amplo apartamento localizado num bairro nobre do Rio de Janeiro, têm um filho pequeno e saudável e uma situação financeira confortável. Na intimidade, contudo, as coisas são bem diferentes. Eduardo, um marido exemplar na opinião dos pais de Bela, é, na verdade, um completo alucinado, que azucrina a vida da mulher com as suas atitudes sempre imprevisíveis, ilógicas, febris e destemperadas. Diz tudo o que lhe vem à cabeça sem se preocupar com as repercussões das suas palavras, é um pai negligente que, muito de vez em quando, dá alguma atenção ao filho pequeno (um filho cujo nascimento, aliás, Eduardo desejou ardorosamente), passa dias seguidos fora de casa sem dar qualquer satisfação à mulher, não raro volta do trabalho bêbado, tem crises de hipocondria aguda, arruma confusões por quaisquer motivos... Tudo isso é contado, no livro, por Bela, num tom sempre resignado, que transparece tensão e um sentimento de impotência diante de uma situação irreversível. O livro pode soar absurdo para alguns, mas ele não está muito distante da realidade de uma infinidade de casais modernos, imersos em conflitos bastante parecidos. O caríssimo leitor deste texto, sobretudo o que vive numa grande cidade, pode ter a certeza de que cruza com vários deles nas ruas todos os dias. O Eduardo construído por Livia Garcia-Roza é uma versão extremada de muitos maridos os quais, uma vez superada a primeira fase do casamento - aquela fase de deslumbramento, onde a paixão é intensa e a vida a dois uma novidade saborosa -, tornam-se verdadeiros estorvos para suas mulheres e filhos. Preocupam-se em manter uma fachada de casal feliz, enquanto o convívio doméstico e conjugal é corroído, pouco a pouco, pelo tédio, pelo gradual distanciamento e pela falta de comunicação. Se existe uma certeza em Meu marido é a de que Livia Garcia-Roza sabia muito bem o que estava contando, enquanto escrevia o livro. Ela, nos seus anos como psicanalista, certamente travou contato com a realidade de muitas famílias e, com isso, desenvolveu uma visão incomodamente nítida - ao mesmo tempo panorâmica e detalhada -, do que se passa nos lares contemporâneos.

É essa visão que serve de matéria-prima também para o livro de contos A cara da mãe (Companhia das Letras, 2007, 112 págs.), que Livia acaba de lançar. A cara da mãe segue os passos - embora não os repita - da sua anterior incursão nas narrativas curtas, o ótimo Restou o cão, que comentei aqui no final de 2006. São, ao todo, dezenove relatos, nos quais, sempre a partir da percepção acurada de momentos corriqueiros do cotidiano da gente comum, a escritora põe a nu angústias, dramas, conflitos, anseios, toda uma gama de situações, a um só tempo banais e profundas, presentes no universo familiar. As histórias, breves, não têm começo ou fim. São instantes, apenas instantes captados quase acidentalmente, como se houvéssemos aberto, por engano, a porta da casa de um estranho e, por alguns minutos, assistíssemos ao desenrolar de uma cena já em andamento que, de outra forma, ficaria circunscrita à intimidade daquele lar, para, em seguida, a porta ser fechada novamente. De todos os contos, três me chamaram, particularmente, a atenção: o que abre a coletânea, "A concertista" (de onde, inclusive, saiu o título do livro), no qual uma menina se prepara para uma audição de piano; "Epitáfios", que descreve um curioso almoço de Páscoa, onde os familiares presentes discutem os epitáfios que colocarão em suas sepulturas; e o interessantíssimo "Kelly", que reproduz o monólogo exasperado de uma criança, filha de um travesti. No conto, a menina, ainda imersa na inocência da infância, interpreta a seu modo a pesada e sórdida realidade que a rodeia, sem compreendê-la inteiramente. O texto é desconcertante na sua simplicidade e certo lirismo e evidencia uma das características mais marcantes da ficção de Livia Garcia-Roza, que é a narrativa a partir do ponto de vista infantil ou juvenil. A escritora consegue incorporar com perfeição a voz de uma criança e enxergar o mundo pela sua ótica sem, em nenhum momento, se trair ou resvalar para a pieguice ou o lugar-comum.

Com pouco mais de dez anos de carreira, tanto Livia quanto Luiz Alfredo Garcia-Roza parecem longe da aposentadoria. Neste momento, ambos trabalham em novos livros, sendo que Luiz Alfredo promete para breve uma nova aventura do consagrado delegado Espinosa. Seus leitores, portanto, não têm com o que se preocupar. O Casal 2000 da literatura brasileira encontra-se em franca atividade e, certamente, nos reserva boas novidades para os próximos anos. Quanto aos adversários da instituição "casamento", mando uma sugestão amiga: repensem um pouco as suas idéias. O casamento não está tão fora de moda como muita gente acredita e é a literatura, representada, aqui, pelos Garcia-Roza, que me traz esta alegre certeza. Pelo menos ele pode, em alguns casos, render boas histórias.

Para ir além











Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 24/7/2007

 

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