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Quarta-feira, 25/7/2007
Retrato 3X4 de um velho jornalismo
Guga Schultze

Há muitos anos escrevi um artigo para um dos grandes jornais mineiros da época (ainda são os mesmos), falando sobre quadrinhos. Fiz um rápido histórico, fiz um texto meticulosamente calculado em sua extensão e teci alguns comentários, que considerei fundamentais, já que seria uma matéria assinada, a respeito da arte única dos quadrinhos.

Fiz tudo em casa, texto datilografado, xerox em alta definição para as ilustrações (em branco e preto), sugestões para o layout, notas e referências bibliográficas. Me tomou uma semana de trabalho. Andei com uma grande pasta de plástico pelas ruas, com aqueles elásticos presos nas pontas, para manter a pasta, cheia, fechada; pegando um ônibus até a copiadora bacaninha, que ficava ao lado da Faculdade de Arquitetura e que tinha a máquina de xerox, mais bacaninha ainda, que tirava fotocópias com alta definição.

Eu estava animado. Não era jornalista, não ia ganhar um centavo, mas ia mostrar pros caras do caderno de cultura uma matéria digna de aparecer num caderno de cultura. Além disso eu tinha conseguido furar o bloqueio do velho jornalista, uma espécie de Darth Vader local, vilão preferido dos quadrinistas também locais, aspirantes a uma vaga na página de quadrinhos. Você tinha que ser da patota dele, e ele não distribuía a senha secreta. Era desenhista também e mestre em vetar talentos superiores aos seus, diziam as más (e algumas boas) línguas. Toda ilustração ou história em quadrinhos, passava pelo seu crivo.

Entrei, literalmente, pela porta dos fundos, atravessando a sala da redação, com seus inúmeros repórteres tristonhos, batucando espaçadamente suas Smith-Coronna, uma ou outra IBM elétrica e fui, escoltado por Jane, uma amiga jornalista, fotógrafa, e o Antonio, repórter cultural e boa praça, depositar meu trabalho na mesa do editor do tal caderno.

Jane me apresentou, o cara levantou a cabeça, olhar vácuo atrás das lentes grossas, disse "hã, hã, deixa aí" e voltou a atenção para a xícara de café à sua frente. Jane me fez um sinal com as mãos de que estava tudo bem e me convidou, também com as mãos, a dar o fora dali. Atravessamos alguns corredores, evitando um encontro ocasional com o Darth Vader. No caminho, uma sala cheia de grandes máquinas escuras e um pessoal silencioso se movendo nas sombras dessas máquinas, concentrado. Jane disse algo como "composição" e continuamos, até a "cantina", onde ela me pagou um café.

Dois dias depois a matéria saiu. Para minha surpresa ocupava mais de meia página, com todas as ilustrações e comentários, numa diagramação que achei muito bem feita, e, depois de comprar um único exemplar (não tinha dinheiro para mais de um), fui conferir. Um parágrafo inteiro tinha sumido. Nele, ingenuamente, eu especulava sobre a influência das culturas populares na produção de quadrinhos e havia escrito: "... somos do Cristo, perdemos Quetzalcóatl..." (que é uma das divindades da América pré-colombiana). O parágrafo inteiro sumiu. Não liguei tanto, pra falar a verdade. Mas comecei ali a perceber, com mais clareza, as engrenagens invisíveis que mantêm um jornal funcionando.

Mais tarde, numa outra conversa, sobre outros assuntos, Antonio, meu amigo jornalista, veio com a frase lapidar: "Cara, de um lado as rotativas. Rodando. Do outro, um leitor, redondamente enganado". Estávamos numa conversa em que ele me contava alguns casos, presenciados ou vividos por ele, no interior das salas de redação, onde "sumiam" originais; onde o copidesque de um texto era outro texto, com outra idéia; onde a informação, dependendo da fonte, do momento, do humor, do clima, era sabiamente dosada em conta gotas ou mesmo sumariamente alterada - mas sempre no sentido do "bem comum", é claro. "Jornalista é um sujeito coberto de vaselina, meu chapa" - outra coisa que ele me disse e que, por ter sido um sujeito bom de papo, a gente não esquece.

Entrei mais algumas vezes naquele prédio central, ao longo dos anos. Fiz alguns amigos, nenhum inimigo (creio) e cheguei a pensar seriamente no jornalismo como carreira. Havia certo glamour no negócio, a tribo dos jornalistas bebia junta nos botecos, era solidária, uns com os outros, contra ameaças "de fora", mas todos exibiam à certa altura, nas conversas, já meio alcoolizados, cicatrizes de facadas nas costas, além de frustrações inconfessáveis mas, evidentemente, confessadas de vez em quando. Escritores corrigindo erros de português, poetas obrigados a redigir notícias populares, cineastas cuja única paisagem era uma parede com um quadro de avisos. Aquilo era o velho jornalismo e aqueles eram seus legítimos representantes.

Já havia uma crise, de outra natureza - creio que o âmbito é a própria natureza humana -, e é possível especular (ou era possível) que o jornalismo oferece, além de uma longínqua realização, uma vasta zona de conflitos que se tornam pessoais na medida em que os jornalistas profissionais têm de encarar um ideal e um status quo, ambos disputando um espaço em que só cabe um deles.

Depois da internet a crise se alastrou, ou desenvolveu outros parâmetros, inimagináveis até então. Um deles é simplesmente econômico, os jornais minguam com a migração dos leitores para a rede - se bem que isso me parece inexato. O que acontece é o surgimento de um novo tipo de leitor, que nunca leu jornais de papel, e não leria, de qualquer maneira. Os velhos leitores continuam fiéis aos seus diários, correios, folhas, pasquins; ao "pulp news" em suma, mas o tempo trabalha contra essa turma. E para o novo leitor há o novo jornalista, sem rosto, relativamente sem nome, sem sofrer muito o tráfico de influência, "livre como um táxi", na expressão marota do Millôr, e que promove uma enxurrada de informações sem coesão, linha editorial ou mesmo metodologia. O velho jornalista tem que fazer frente à qualidade, já rarefeita, da informação excessiva e das fontes dessa mesma informação. Tem que provar, de alguma maneira, e agora é sério, que é indispensável.

"Nenhum jornalista sério acredita em nada. (...) Sabe que o grande jornal é o que não se escreve; o que lhe resta de produtivo é controlar e manipular o que omite. Partilha o preconceito de elite, da qual é carona ou membro titular, preconceito que a Igreja Católica é a única instituição do Establishment a confessar, descaradamente: que o povo merece informação no seu nível na escala social..." (Paulo Francis).

Os tempos mudam, o clima muda pra todo lado e, pra encerrar, mais uma citação, antigona, essa de Bob Dylan: não é preciso de um meteorologista para dizer de que lado o vento está soprando.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 25/7/2007

 

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