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Terça-feira, 25/9/2001
Paranóias Persecutórias
Rafael Lima

Fatos: no dia do atentado às torres gêmeas do World Trade Center, a Wal-Mart, rede de hipermercados nos Estados Unidos da América, registrou um aumento substancial nas compras de água e gêneros de primeira necessidade. Cessados os estrondos e postos ao chão os arranha-céus, os itens campeões de venda nos mesmos Wal-Mart no dia seguinte foram bandeirinhas e ornamentos de teor nacionalista, tais como papel crepom azul, vermelho e branco. Dois dias depois do atentado, o que cresceu foi o consumo de armas, principalmente “aquela espingardinha para deixar debaixo da cama”, o que levou algumas lojas a retirar de suas prateleiras armas caseiras para inibir uma possível escalada de violência doméstica. Um amigo meu fez, com raciocínio jocoso, a seguinte interpretação: “Primeiro, a gente se defende; depois, arruma uma boa desculpa para poder sair matando os outros”.

A questão toda é que o terrorismo conseguiu cumprir à excelência sua tarefa, qual seja a de aterrorizar, a de criar insegurança nas pessoas. Depois da queda, não houve cidadão norte-americano que não olhasse para o céu sem rabo no olho, sem aquele mínimo de desconfiança que faz pensar que qualquer avião pode cair em cima da gente. A situação é tão trágica que só pode ser visualizada apelando-se para o absurdo, e o que o sentimento de insegurança mais me lembra é um texto do Ivan Lessa publicado no volume 2 da Antologia Brasileira do Humor chamado Paranóia (50!) Qual é a sua? Escolha, uma coletânea de frases curtas e numeradas expressando aquele irredutível medo do desconhecido, tipo:
12 - Cigarro mentolado provoca a impotência
15 – O elevador vai ficar parado entre o 7º e o 8º
21 – O papa é judeu
26 – A pá do ventilador vai se soltar e me decepar a cabeça
38 – Por que é que escreveram meu nome errado?

Utilizando a mesma lógica insana para explicar o atentado, teríamos algo assim:
- Aqueles árabes estavam com um sorriso estranho no aeroporto
- Por que eles não param de falar entre si?
- Ele está levantando e não está com cara de quem vai ao banheiro
- O avião saiu da rota
- Acho que ele está voando baixo demais, e na nossa direção
- Vai bater.... Vai bater....

A maior prova dessa lógica do absurdo é que a última frase também aparece no texto do Ivan Lessa, um texto humorístico, diga-se de passagem. E de que essa proclamada guerra contra o terrorismo vai ser muito mais difícil do que se supõe, já que, como foi mostrado, o terror não segue a lógica cartesiana das normas de segurança. Que o serviço de inteligência norte-americano tenha falhado: quem imaginaria que um suicida potencial treinaria pilotar e sequestraria um avião com o objetivo de arremessá-lo de encontro a um prédio? É até possível trabalhar com esse tipo de hipótese, porém, fica evidente que o terrorismo, assim como o tráfico de drogas, ou qualquer tipo de banditismo (pequena ou larga escala) sempre estará na frente das forças policiais em termos de inovação, de criatividade, de invenção de métodos e logística. Bandido quando se organiza, ninguém segura – como já me disseram.

Tome-se como exemplo os suspeitos do sequestro dos aviões que atingiram o WTC. Contaram-me que um dos assaltantes tinha estudado 4 anos de engenharia na Alemanha além de fazer o curso de pilotagem já nos EUA. Não é um guerrilheiro latino-americano esfomeado, não é um africano subdesenvolvido que recebeu lavagem cerebral para guerrear até a morte; é alguém com potencial de planejamento de decisão imensos, é alguém com autonomia para realizar seu ataque; é um civil: como suspeitar, rastrear e perseguir um sujeito assim? O que nos leva de volta à questão da paranóia – a mesma que teria feito George W. Bush dar aquela espiadinha rápida para o céu depois de desembarcar do helicóptero que o trouxera da base militar de Nebraska, horas antes de fazer seu discurso para a televisão do dia 11. Nem ele estaria a salvo. E agora, fechar o espaço aéreo? Por quanto tempo? Aumentar a revista nos aeroportos? Permitir que todos os passageiros embarquem armados? Armar só o piloto? Sacaram como é complicado?

Como se torna, na prática, impossível o rastreio de todos os virtuais suspeitos, em geral a consequência é uma suspeita generalizada a todo e qualquer cidadão de origem árabe residente nos EUA, e a criação de dispositivos para controle de suas atividades, tais como a obrigação ao porte de documentos especiais, preenchimento de relatórios periodicamente em departamentos do governo e por aí a fora. Dois problemas emergem como efeitos colaterais aqui. Primeiro: até onde vai esse controle? Segundo: como esse controle afeta os cidadãos norte-americanos? Não é preciso fazer mais perguntas. O FBI já começou a instalar o software Carnivore em servidores de mensagens grátis, tais como o Hotmail, como conta esse artigo da Wired. O que o Carnivore – e seu correlato europeu, Echelon – faz, fundamentalmente, é ler o conteúdo das mensagens com um filtro qualquer para identificar trocas de informações suspeitas. Diz-se que criar uma conta com Allah no nome e qualquer coisa encriptada em árabe no corpo é receita certa para visita dos homens de preto. O que mais espanta nessa história não é nem ver mais uma tentativa frustrada de acabar com o crime tirando o sofá, ou, na melhor das hipóteses, o bode, da sala; é saber que os norte-americanos aceitaram de boa vontade essa violação flagrante de sua privacidade em nome da segurança, mostrando que estão jogando no lixo ensinamentos logo de um dos seus Founding Fathers, Ben Franklin (vai no original para não correr o risco de se corromper na tradução): "Those who trade liberty for security will have neither”. Ou, como colocou Brigid McMenamim em seu artigo, “América é construída na saudável descrença do poder do governo”. Porque esse povo não consegue largar daquela velha síndrome de Dr. Frankstein: primeiro exuma os cadáveres e os rouba aos pedaços, costura tudo e enche o bruto de choques, e depois que o bicho sai por aí fazendo estrago, fica gritando que criou um monstro...

Rafael Lima
Rio de Janeiro, 25/9/2001

 

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