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Sexta-feira, 10/8/2007
A minha Flip
Rafael Rodrigues

Foi em 2004 que, pela primeira vez, deu vontade de ir à Flip. Uma vontade morna, eu estava trabalhando e não poderia abandonar o trabalho para ir, tamanhas dívidas tinha na época e tão pequenino era o salário que recebia. Em 2005 consegui a carta de alforria do trabalho e quase, faltou pouco, fui à Flip. A prudência me fez ficar quietinho em casa e aguardar uma oportunidade melhor. Um ano depois, já quase desesperado por não ter ainda encontrado um emprego decente, nem cogitei a possibilidade de ir a Parati. Acompanhei tudo daqui mesmo, de casa, via TV, Digestivo e Paralelos.

Eis que este ano, mesmo trabalhando ― até demais da conta ―, fui à Flip. Milagrosamente consegui um adiantamento de 10 dias de férias do novo trabalho e me mandei para Parati. Com escala em São Paulo, com direito a encontro do Digestivo e tudo mais. Foi (e vou ser piegas agora) uma viagem inesquecível. Mas aqui falarei apenas dos dias em Parati, e do que vi na Festa.

Para quem não está entendendo nada: a Flip, Festa Literária Internacional de Parati, começou dia 04 e foi até o dia 08 de julho. Chegamos à cidade carioca no dia 04 à noite, e a chegada não foi tão tranqüila quanto pensávamos que seria. Escrevo no plural porque fui de carona com o Julio e com a Carol, e porque achamos que seria fácil encontrar a pousada onde eu ficaria. Mas que nada... Procuramos tanto sem encontrar que desistimos de procurar. Fomos para o show da excelente e divertidíssima Orquestra Imperial, para relaxar um pouco. De lá fui a um ponto de táxi, onde um taxista, devidamente munido de um mapa, me explicou direitinho onde era a pousada escondida. Voltamos, encontramos a pousada (que compensou o contratempo com instalações mais que excelentes; já tenho até reserva para o ano que vem), e só então pude dormir o sono dos justos.

Minha intenção era acordar cedo para assistir a uma entrevista coletiva e encontrar a sala de imprensa, para ver a possibilidade de conseguir um ingresso para assistir, de dentro da Tenda dos Autores, uma das mesas que eu mais queria ver: Jim Dodge e Will Self.


Arthur Dapieve, Jim Dodge e Will Self.

É bem provável que todo aquele que ler este texto saiba como funciona a Flip, mas, por desencargo de consciência, explicarei de maneira breve a diferença entre a Tenda dos Autores e a Tenda da Matriz. A Tenda da Matriz é onde os espectadores assistem às mesas através de telões. A Tenda dos Autores é o local onde acontecem as mesas. Para entrar lá o ingresso é mais caro, e muito difícil de se conseguir, se você for da imprensa. Nada que uma boa conversa não resolva, se ainda houver ingresso, claro. No caso da mesa com o Dodge e o Self, consegui o ingresso para a Tenda dos Autores na pura sorte. A assessoria de imprensa da Flip me deu um ingresso para uma outra mesa. Eu não vi, o cara que poderia me barrar na entrada também não, e pronto, entrei. Como já falei dela no blog, não falarei novamente. Digo apenas que foi o melhor dia, para mim. Até porque foi meu aniversário.

Não dá para ir à Flip e ver tudo. Essa foi uma das lições que aprendi. Se você quer ir, você deve definir suas prioridades e ser bastante disciplinado em relação a horários. Por conta de dormir tarde e nunca acordar cedo, perdi todas as entrevistas coletivas. Saí de Parati sem ver nenhuma. Justamente o que o Julio disse ser o melhor de se ver. Mas enfim, paciência.

A segunda mesa que vi foi com o brasileiro Silviano Santiago e o argentino César Aira. Ambos críticos literários e ficcionistas, falaram sobre como é ser escritor e crítico, ao mesmo tempo. Silviano começou a escrever crítica literária quando jovem. Segundo ele, sua literatura, naquela época, era sofrível, e ele percebeu que era melhor analisando do que fazendo literatura. Com o tempo, a coisa ficou equilibrada, e hoje ele é quem é. Já César Aira começou a escrever ensaios aos 40 anos. Disse que resolveu praticar a crítica para aprender sobre teoria literária e para poder escrever sobre livros que são deixados de lado pela "grande crítica" (algo que, guardadas as devidas proporções, eu humildemente tento fazer). A mesa, que poderia ser muito boa, foi morna, por culpa do mediador, o poeta Carlito Azevedo. Atrapalhou-se com a quantidade de perguntas enviadas pela platéia e me pareceu ter ficado nervoso ao lado dos dois autores. O que de mais "quente" aconteceu na mesa foi Aira dizer que Alejo Carpentier e García Márquez são "medíocres". Carlito ficou rindo, rindo, gargalhando, quase. Não perguntou por quê Aira disse isso, não expôs a própria opinião, não instigou Santiago a dizer a dele, enfim, poderia ter sido uma boa discussão. Afinal, por mais que cada um possa falar o que bem entender, Aira não deveria ter saído de lá sem fundamentar sua declaração ― absurda, na minha opinião. Coisa que em nada desabona sua literatura, é bom deixar isso claro.

Outra mesa que assisti do início ao fim foi a com o escritor israelense Amós Oz e com a escritora sul-africana Nadine Gordimer. Ela, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura; ele, um dos mais elogiados escritores contemporâneos, fizeram uma das mesas mais comentadas e elogiadas de toda a Flip. Fiquei maravilhado com os dois autores. São modelos para qualquer escritor, em qualquer parte do mundo. E foram tão simples, tão respeitosos um com o outro, e conversaram com tanto bom humor... É difícil assistir a uma mesa dessas e depois ficar sabendo de um ou outro escritor nacional reclamando de não ter conseguido publicar aquele seu "livro genial de contos" sobre prostitutas e personagens beberrões. Não dá para comparar. Tudo bem que Nadine viveu o Apartheid, e acho que não preciso detalhar aqui o que Amós Oz viveu e tem vivido em Israel. É certo que são autores que têm vivências ímpares, não dá para comparar as vidas deles com as de outros autores. Mas tem escritor que abusa da boa vontade do leitor (e dos editores também, coitados). Infelizmente não anotei nada da mesa, apenas uma frase de Oz: "Escrever qualquer um escreve. O difícil é apagar, moldar...". Acreditem ou não, mesmo sem anotar nada, absorvi muita coisa, e aprendi muito com ambos. Foi uma mesa mágica, se me permitem o exagero.

A última mesa que assisti foi com os jornalistas Lawrence Wright (norte-americano) e Robert Fisk (britânico). E esta foi um exemplo para qualquer organização de evento literário. Uma mesa pode ser salva pela qualidade dos autores, a depender de quem sejam. Mas uma mesa pode ser muito melhor do que o esperado se o mediador for alguém que realmente saiba o que está fazendo.


Dorrit Hazarim, Lawrence Wright e Robert Fisk.

Foi o que aconteceu na conversa de Fisk e Wrigh, mediada por Dorrit Hazarim, uma das editoras da revista Piauí, que conduziu a mesa brilhantemente. Tanto que, em determinado momento, os autores foram deixados totalmente à vontade, como se estivessem conversando, apenas os dois, na casa de um deles. A mediadora assumiu o papel de espectadora, depois de ter levado os autores, propositalmente, até aquele ponto.

Me chamou a atenção o que Lawrence Wrigh disse sobre quando começou a escrever O vulto das torres, livro sobre o de 11 de setembro, vencedor do Prêmio Pulitzer (não-ficção) deste ano. Horas depois de ficar sabendo sobre o ataque ao World Trade Center, mesmo abalado pela notícia, começou a pesquisar sobre o ocorrido. Deu telefonemas, pesquisou na internet, TV, rádio. E isso me fez lembrar do que fiz quando soube do atentado. Comecei a pesquisar na internet, em sites brasileiros e nas agências internacionais (mesmo lendo mui porcamente em inglês). Eu, que já vinha cultivando a vontade de fazer jornalismo, tive naquele momento a certeza absoluta de que o jornalismo era o meu caminho. Essa lembrança, de ter quase que seguido o mesmo instinto de Wrigh (que mesmo conhecendo pouco, admiro bastante), me deixou bastante emocionado. Houve ainda discussões entre eles sobre a permanência das tropas americanas no Iraque, sobre Osama Bin-Laden não ter sido encontrado até hoje, sobre o apoio de Tony Blair à iniciativa belicista de Bush. Fisk, no melhor estilo britânico, provocou Wright dizendo que nenhuma nação merece ser atacada, mas que não se deve esquecer que os EUA humilharam o Oriente durante décadas. O jornalista americano, ou não afeito a polêmicas ou sem ter argumentos para as provocações de Fisk, acabou por concordar com o inglês, mesmo sem ter dito isso com palavras. Robert Fisk é mais ativo que Wright. E isso ficou demonstrado na mesa, com as declarações mais enérgicas de Fisk. Ele faz a cobertura da guerra direto do front. Dois livros seus recém-lançados no Brasil (A grande guerra pela civilização e Pobre nação) são prova disso. Em ambos Fisk descreve os horrores que viu nas guerras que cobriu, além de fazer análises políticas sobre os conflitos.

Infelizmente não pude comparecer a todas as mesas que planejei ver, mas consegui assistir a todas que realmente queria, inclusive a leitura que o sul-africano J.M. Coetzee fez do seu ainda inédito Diário de um ano ruim que, pelos trechos lidos, é certeza de ser um grande livro.

A Flip não é apenas um evento literário, isso é certo. É também um evento social. Como disse o Sérgio Rodrigues, "aqui tem gente de todo tipo, inclusive gente que nunca leu um livro na vida". E com toda a razão. Mas é uma ótima oportunidade para ver autores que talvez nunca mais voltem ao Brasil, ou que você talvez nunca mais tenha a chance de ver de perto. Ok, literatura não é "ver autor de perto", Dostoiévski morreu faz mais de 100 anos e ninguém precisa ver ele pra perguntar nada. Mas dá um desconto: é legal poder conversar com os autores. E não é difícil conseguir falar com alguns convidados. Exceto quando o convidado é tão arrogante que finge que não viu você se dirigir a ele. Coisa que não aconteceu quando encontrei Jim Dodge, depois da leitura de Coetzee, nem quando encontrei a Maria Amélia, que há mais de 20 anos está à frente da editora José Olympio, fazendo um belíssimo trabalho. Bom seria se todo mundo fosse assim.


O atencioso Jim Dodge, eu e Fup.

Queria ter falado aqui sobre os "novos autores", mas não vi nenhuma mesa com eles. Até escrevi uma notinha no caderno, sobre o que vi fora da mesa, nas ruas de Parati:

"Jovens autores reclamam de barriga cheia: circulam por Parati com óculos escuros Ray-Ban e mochilhas, camisas e chapéus Puma. Onde estão os 'autores marginais', afinal?"

Mas não consegui melhorar e desenvolver isso, nem consegui um gancho para falar sobre o assunto. Fica para a próxima.

Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 10/8/2007

 

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