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Segunda-feira, 1/10/2007
Batom, kichute e literatura
Pilar Fazito

Dia desses, li n'algum lugar o resultado de mais um estudo óbvio. Finalmente, pesquisadores se deram conta do que as mulheres já estão carecas de saber: a demonstração da ira feminina no trabalho sempre leva a pior em relação à do sexo dito "mais forte".

Dizem os doutores, desta vez, que uma mulher que demonstra raiva ou impaciência no meio profissional sempre é mal vista por seus colegas. Mesmo que tenha todos os motivos para subir nas tamancas. E boa parte desses colegas que a julgam mal, pasmem, também são mulheres.

Segundo o estudo, o faniquito masculino é uma prova da virilidade e da autoridade do gajo, atestando sua capacidade de controlar as coisas no serviço. Já uma alteração de voz ou uma expressão carrancuda num corpo cheio de curvas seria um sinal de destemperança e desequilíbrio hormono-emocional. Em termos vulgares, praticados às escondidas nos almoxarifados de toda empresa, trata-se de uma "mal-amada", "dona Maria", "dona onça" que, provavelmente, estaria "naqueles dias", "de chico", "TPM" ou "na menopausa". Qualquer época do mês explicaria esse achaque "desnecessário".

Pois é. Demorou, mas os cientistas conseguiram comprovar esse senso comum.

Nunca me dei conta de sofrer na pele uma discriminação por ser mulher até bem pouco tempo. Antes disso, achava que tudo não passava de assunto da mídia, vitimização, coisa de feminista ou uma realidade vivida apenas pelas minhas avós e, talvez, tias e mãe. Enfim, águas passadas.

Fui uma menina-moleque. Cresci rodeada de primos e participava de muitas brincadeiras próprias do universo masculino. Jogava bola, brincava de Playmobil e cheguei a usar Kichute na escola. Eu me sentia mais à vontade descendo a rua de carrinho de rolimã do que brincando de casinha com minhas primas frescas. Brincadeira de menino sempre foi mais legal. A gente corria o risco, entende? Era a "Turma Zezinho da Silva" que corria pelos quarteirões do bairro, fugindo dos donos de carros alvejados por sementes de mamona. Uma turma de 5 primos que "assaltava" os transeuntes com pistolas espaciais de plástico, verdes e alaranjadas. O mesmo grupo que preferia passar numa padaria sete quarteirões mais distante de casa só para incluir, no roteiro, excursões ao apartamento de uma tia. Na volta, comíamos os biscoitos pimentinha, abríamos uma ponta do saco de leite para aplacar a sede e ainda vínhamos apertando tudo quanto era campainha e saindo correndo.

Eu era a única menina ali. Uma menina que achava mais divertido o papo dos garotos do que aquela ladainha de casinha-boneca das meninas. Tive uma deliciosa infância de moleque. Quando o traseiro grande e os peitos que brotavam começaram a me fazer passar vergonha e ter dificuldades para trepar em árvore foi que percebi a minha sina: "nascestes mulher, garota".

Aí começou essa bobagem que ainda hoje a sociedade propaga. Desde que tirei minha carteira de motorista, não canso de ouvir que eu dirijo "como homem". Toda vez, rebato a assertiva, perguntando se aquilo é um elogio ou uma ofensa. Ao que os incautos concluem: "mas eu tô dizendo que você dirige bem!" A minha pergunta continua: devo tomar isso como um elogio ou uma ofensa, afinal? É como se mulher não pudesse dirigir bem. Ou como se mulher, para ter valor, tivesse que ser "mulher-macho", como observei no tempo em que morei no nordeste.

Nunca parei para pensar nessa guerra dos sexos porque sempre achei uma perda de tempo. E às vezes me irrita o fato de a própria literatura fomentar essa questão. É o caso da classificação da literatura feminina. Até hoje me pergunto o que caracteriza a dita literatura feminina. Será o fato de ser escrita por uma mulher? É só isso? Se for só isso, toda a discussão na internet e em trabalhos acadêmicos pode ser descartada.

Um trabalho que analise uma escrita feminina deveria desconsiderar o sexo do autor. Por mais que as experiências de um escritor de carne-e-osso moldem sua forma de escrever, ele não interessa para a trama. A manifestação do "autor-empírico", como chama Umberto Eco, só atrapalha a leitura. E o leitor, por sua vez, não tem o direito de importuná-lo. Esse é o tipo de relação que funciona melhor à distância, um ignorando a realidade do outro.

Imagino uma análise da literatura feminina sob outro ponto de vista, pouco explorado em nossas universidades cartesianas: a concepção do Yin e Yang. Considerando as características femininas e masculinas que se complementam e dão o equilíbrio a diversas situações, seria interessante estudar personagens, narradores, mitos e arquétipos que ainda hoje são uma referência para a identidade de todo mortal.

Aí sim, seria um trabalho interessante, porque não se basearia no sexo do escritor para identificar o tom feminino no texto. A obra de Guimarães Rosa, por exemplo, alterna trechos de singeleza feminina e outros de virilidade masculina. E isso não tem nada a ver com batom e Kichute. Tem a ver com o que está lá dentro de quem escreve. O tal lado feminino e masculino do escritor (e da escritora).

A sociedade sempre confundiu feminino/masculino com fêmea/macho. Dirigir mal independe de gênero. Gritar sem razão ou ter motivos para isso, também. Na escrita, então, nem se fale. É tanta variedade de tom e estilo que já está bom demais se o texto do sujeito for considerado algo próximo da literatura. Para quê esmiuçar mais?

Pilar Fazito
Belo Horizonte, 1/10/2007

 

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