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Sexta-feira, 5/10/2007
Na praia
Rafael Rodrigues

O escritor britânico Ian McEwan é um dos autores mais elogiados da literatura contemporânea. Seus romances Sábado e Reparação (este último, principalmente) são citados em qualquer lista de melhores livros dos últimos anos que almeje o mínimo de dignidade e credibilidade (mesmo que o leitor da lista não tenha lido ambos livros...).

Aqui, não discutiremos nenhuma das duas obras, até porque não as li (ainda). A razão desta coluna é Na praia (Companhia das Letras, 2007, 128 págs.), novela de McEwan recentemente publicada no Brasil. Não considero ser um romance, por conta do número de páginas e também por causa de uma das definições de romance - a que mais me apraz - dizer que "romance" é uma narrativa com diversas ações acontecendo paralelamente, com tais ações tendo uma ligação entre si.

Em Na praia há uma ação, uma história, e há também outras, mas que são contadas em flashbacks. Existe uma ligação, mas não são paralelas. E uma ação não interfere na outra.

Florence e Edward, os protagonistas da novela, são dois jovens ingleses recém-casados, que estão numa praia, em noite de núpcias. A época, início da década de 1960, um "tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente impossível", diz o narrador. O caminho até ali não foi tão complicado. Namoro, noivado, casamento. McEwan dá a impressão de que foi quase tudo muito simples, entre o casal.

Florence é de família rica, teve uma vida tranqüila, nunca precisou trabalhar, nem passou por dificuldades financeiras. É violinista, tem uma formação cultural mais "clássica", tradicional, digamos. Edward é de família simples, desde garoto sabe o que são dificuldades - sua mãe sofreu uma lesão cerebral e seu pai, ele e suas duas irmãs são quem cuidam dos afazeres domésticos -, mas é do tipo esforçado (com arroubos de jovem inconseqüente de vez em quando) e estudou História. Ambos se conheceram em uma reunião de um grupo da Campanha pelo Desarmamento Nuclear. Romântico, não?

Deixemos a política de lado e falemos um pouco mais sobre o livro. Na praia é uma novela, acima de tudo, divertida de ser lida. Prefiro enxergá-la como uma obra juvenil de McEwan. Não que tenha sido escrita para o público juvenil, não é isso. Mas a história, os personagens e até mesmo a maneira como o autor conduz a narrativa é revigorante. O resultado é uma leitura rápida, conseqüência também da escolha de McEwan em contar apenas o essencial. O que sobra, em Na praia, é muito pouco, e rende boas risadas. Como quando ele compara os políticos ingleses com os políticos americanos.

Mas o que move mesmo o livro é a noite de núpcias do casal protagonista. E, mais especificamente, o que não acontece nela. Edward e Florence não fazem jus ao nome da noite. Florence não consegue se desvincular do medo que tem do sexo; ela não revela seus receios ao marido e, pior, continua agindo como a "recém-esposa" que vai finalmente perder a virgindade com ele. Edward não percebe nada de estranho, até o momento em que um incidente deixa a ingênua e pura Florence aterrorizada. O casal não consuma o ato sexual e ela sai em disparada do quarto do hotel, rumo à praia.

Edward, atônito, tenta entender o que aconteceu e encontrar uma explicação racional para o ocorrido. Depois de algum tempo, sem respostas definitivas, vai atrás de Florence. Antes disso, uma das frases mais sagazes do livro: "Não é fácil perseguir verdades tão duras descalço e de cuecas".

Ele a encontra encostada em uma árvore caída. Nesse reencontro, o casal tem uma conversa áspera, dolorida. Edward não consegue enxergar outro lado que não o seu, e seus lábios pronunciam as frases mais cruéis da conversa. Não há reconciliação após o diálogo, tampouco há final feliz para Florence e Edward, juntos. Depois da praia, cada um segue seu rumo (por motivos óbvios, os detalhes da conversa e do ocorrido entre os dois não será relatado aqui). Sem direito a um novo encontro ou qualquer tipo de contato.

Ambos seguem suas vidas. Florence realiza seu objetivo de ser uma talentosa e reconhecida violinista. Edward, que antes do rompimento queria escrever livros de História, envereda pelo caminho da organização de shows de rock e acaba tornando-se sócio de uma loja de discos. A história de amor que imaginava-se eterna tem seu fim no mais improvável dos momentos, a noite de núpcias. O inusitado do acontecido é apenas a ponta do iceberg que é Na praia. O sexo tem um peso diferenciado para homens e mulheres. E, às vezes, ele pode não ter importância nenhuma para alguém, seja esse alguém homem ou mulher. Na praia é, no fundo, sobre isso. Sobre como homens e mulheres vêem o sexo, como podem existir visões tão discrepantes sobre um mesmo assunto. Homens são criados para serem viris, "machos", "pegadores". As mulheres ainda são criadas para serem ingênuas, puras, virgens até o casamento. Era assim na época em que se passa a história, e continua sendo assim hoje.

É também uma história sobre escolhas. Sobre amor e paciência, sobre o que poderia ter sido e não foi. Uma escolha mal feita, uma palavra mal dita, pode ser o fim não só de um destino, mas de vários. E quando um livro proporciona ao leitor uma reflexão desse porte, pode-se dizer que sua missão foi cumprida.

Para ir além





Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 5/10/2007

 

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