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Quarta-feira, 19/9/2007
O Leão e o Unicórnio II
Guga Schultze

Entre os poucos e-mails que recebi por esses dias, havia um me perguntando se eu estava brincando quando escrevi, há algum tempo, sobre a "rivalidade filosófica" entre Karl Marx e Lewis Carroll. Assegurei que eu estava brincando, claro, mas senti que minha resposta não satisfazia as expectativas da pergunta. Marx e Carroll são famosos, mas nem tanto. Quase todo mundo já ouviu falar de Karl Marx e, da mesma forma, ouviu falar de Alice no País das Maravilhas, o livro mais famoso de Lewis Carroll, mas geralmente é só.

Não sou, ou não fui, um leitor de Marx - me parece que ninguém consegue atravessar sua extensa produção sem ter, previamente, a intenção de tornar-se marxista. Mesmo que essa intenção não seja consciente, há uma infinidade de fatores que predispõe a pessoa a se tornar um marxista, fatores muito pouco discutidos e, entre eles, uma religiosidade disfarçada ou insatisfeita.

Marx, apesar de ateu confesso, atinge almas religiosas. É um aparente contra-senso, mas a necessidade de um poder qualquer, superior ao âmbito individual - que regule, oriente e ampare a nossa existência no caos -, é típica, tanto no marxista quanto no carola. Há muitos outros pontos comuns, como a visão, sempre materialista (nos dois casos), do conflito entre ricos e pobres ou a crença (não materialista) na eficácia da fé - tanto a que é dirigida para as esferas celestes quanto a que aponta para as instituições sacrossantas de um estado ideal.

Marx e Carroll têm em comum o fato de que são escritores às voltas com a lógica. No caso desse último, isso é uma coisa literal - era matemático e como C. L. Dodgson, seu nome verdadeiro, assinou alguns trabalhos sobre lógica booleana.

Mas o negócio de Carroll, não de Dodgson, é que ele tinha uma lógica estranha. Pensava coisas diferentes sobre as palavras. Se ele fosse brasileiro, ia ser da turma do Guimarães Rosa, talvez. Só que ele foi além, porque brincava com a semântica, o significado das palavras. A gente leu adaptações infantis do Alice no País das Maravilhas, que não é um livro infantil. Era pra ser, mas não é. O próprio Carroll achava que era.

Carroll escreveu aquilo numa época que, paradoxalmente, era mais liberal que a de hoje, sob certos aspectos. O cidadão inglês, vitoriano, não conhecia psicólogos, nem TV, nem mídia. Não tinha a menor idéia do que fosse ecologia, direitos humanos ou do que seria o politicamente correto. Sherlock Holmes aparecia nos livros como dependente de morfina e outros opiáceos sem que seu público leitor se sentisse atacado em seus valores vitorianos, por exemplo.

Dá a impressão de que, se a gente pudesse seguir um inglês qualquer daquela época, no momento em que ele entrasse em casa, a gente veria ele se despir da pose, das roupas, do chapéu côco e do guarda-chuva, acender um narguilé de haxixe, agarrar um chicote e começar uma orgia sado-masoquista com algumas mulheres hindus, vestidas de odaliscas, que ele guardava, confinadas, num porão. Os hooligans estavam todos lá, dentro daquelas fachadas tranquilas, naquelas casas semelhantes entre si mas, lá fora, o clima vitoriano permanecia intocável.

Hoje em dia, neo-calvinistas, fomos informados que Carroll era, vamos dizer, uma espécie de tarado. Hoje, ele não iria escrever livro nenhum, ia virar um hacker na Internet (tinha uma mente afiada pra lógica, matemáticas, xadrez, mecanismos diversos - coisas que fazem um hacker - e era muito criativo), ia deixar as polícias internacionais, o pessoal dos direitos humanos, dos direitos das crianças, completamente malucos, tentando rastrear os sites que ele ia fazer sobre nudez infantil. Nunca molestou criança nenhuma, que eu saiba. O negócio dele era só ver nus, voyer. Ia ser, hoje, uma espécie de gênio do mal.

E ele escrevia coisas assim:

- Alice encontra o Gato de Cheshire (Cheshire é um lugar da Inglaterra), um gato que aparece e desaparece, às vezes de repente, às vezes aos poucos, deixando apenas um sorriso no ar.

- Alice pensa que já viu muitos gatos sem sorriso algum, mas nunca viu um sorriso sem gato.

- Alice pergunta ao gato qual caminho ela precisa tomar pra sair dali. O gato responde que isso depende de para onde ela quer ir. Alice fala que não importa, quer apenas sair dali. O gato responde que, nesse caso, qualquer caminho serve.

- Alice encontra o Cavaleiro Branco, que diz que está compondo uma canção que, ele espera, trará lágrimas aos olhos das pessoas, senão... Alice pergunta: senão o quê? Senão ninguém chora, responde o cavaleiro.

- Outra vez, o gato aparece num jogo de cricket da Rainha de Copas, que é uma megera louca que a toda hora manda cortar a cabeça de alguém. Não dá outra: a rainha vê o gato e ordena: Cortem-lhe a cabeça! O gato desaparece e deixa só a cabeça no ar, rindo. Há uma discussão acalorada:

- o ponto de vista do carrasco é que ele não pode decapitar uma cabeça sem o corpo.

- O ponto de vista do rei é que qualquer coisa que possua ao menos uma cabeça, poderá ser decapitada.

- O ponto de vista da rainha é que se não lhe obedecerem a ordem, todas as cabeças vão rolar. Por isso estão todos tão nervosos.

- Alice encontra o rato que lhe diz que vai contar uma história. Em inglês a palavra é "tale", uma história, uma lenda. Alice está sonolenta e observa a cauda do rato enquanto ele conta sua história. Cauda, rabo, em inglês é "tail", a mesma pronúncia de "tale".
Alice ouve a história do rato que,
graficamente, no livro, vai
tomando a forma de
uma cauda, rabo,
mais ou me-
nos nesse
forma-
to.

Carroll escreveu muitas coisas como essas nos dois livros que o fizeram famoso, Alice no País das Maravilhas (Alice in Wondeland) e Alice através do espelho (Trough the Looking-Glass). Além disso, existem poemas estranhos, sátiras sutis à poesia inglesa da época, como o "Jabberwocky" - o "Jaguadarte", na tradução mestra de Augusto de Campos (aqui, a primeira estrofe):

"Jabberwocky":

"Twas brillig, and the slithy toves
Did gyre and gimble in the wabe:
All mimsy were the borogoves
And the mome raths outgrabe.
"

"Jaguadarte":

"Era briluz. As lesmolisas touvas
Roldavam e relviam nos gramilvos
Estavam mimsicais as pintalouvas
E os momirratos davam grilvos."

Aqui, os versos são formalmente rimados, o sentido é captado, as palavras soam familiares, como em velhos poemas que a gente aprende na escola, mas são neologismos. Um deles, pelo menos, entrou, através de dicionários ingleses, para a língua oficial: galumphing (galunfante), o ato de galopar em triunfo. Há quebra-cabeças e charadas, variações brincalhonas de nursery rhymes ou seja, parlendas, poemas infantis ingleses, tradicionais.

Há ainda uma série de insinuações perturbadoras sobre tempo e espaço, dimensões, coisas que a física moderna pesquisa com frequência, alucinógenos e, conseqüentemente, alucinações. A Lebre de Março é louca porque Março é o mês em que as lebres inglesas entram no cio e ficam descuidadas frente aos caçadores. O Chapeleiro Maluco é maluco provavelmente porque os chapeleiros ingleses usavam uma cola, que era alucinógena, na fabricação de chapéus e, na verdade, alguns ficavam doidões.

Além desses dois livros, Carroll escreveu outra obra prima: o longo e hilário poema The Hunting of the Snark (A caça ao Turpente), sendo "Snark" uma palavra possívelmente formada da aglutinação de shark (tubarão) e snake (serpente). O livro é dividido em eight fits, ou seja, em oito ataques. São oito ataques de riso, no mínimo.

Carroll, sem ele mesmo esperar, ficou famoso com sua Alice. Creio que não tinha pretensões de ser escritor mas, consagrado como tal, tentou um romance "sério", As aventuras de Sylvie e Bruno. É um livro enfadonho, no geral. Levou longos dezesseis anos para escrevê-lo. É um livro escrito por Charles Lutwidge Dodgson, o nome verdadeiro de Lewis Carroll, ainda que o autor não pudesse mais se esquivar de seu alter-ego e há muitas coisas de Carroll no livro.

Como Dodgson ele ainda produziu alguns trabalhos matemáticos de lógica, como já foi dito, problemas de jogo de xadrez, uma série de retratos (era fotógrafo), a maioria de crianças. Meninas - "Adoro crianças, exceto meninos". Algumas nuas.

Sabe-se que Dodgson era gago, tímido. Gagueira tem a ver com culpa. Foi nomeado diácono da Igreja Anglicana a certa altura da vida. Diácono, uma espécie de sub-pastor, sub-padre. Mas em Lewis Carroll você não encontra um único traço do diácono. Escreveu ainda alguns pequenos trabalhos, humorísticos, aplicando uma lógica formal sobre situações e criando resultados inesperados, evidenciando a fragilidade de algumas certezas corriqueiras que a gente tem sobre as coisas.

Agora, quanto a Karl Marx, que era um pensador/escritor da pesada, tenho pouco a dizer. Li pouco. O suficiente para notar a argumentação farta, precisa e lógica. A obra é extensa e pesada o suficiente para achatar um leitor desavisado. No entanto, tenho meu sensores (válvulas antigas, que esquentam lentamente e apitam, luzes vermelhas piscando, lentas, no inconsciente) e percebo Marx como um alemão (só podia ser alemão) "ingênio", ou seja, um gênio ingênuo. Uma certa ingenuidade cristã permeia o manifesto escrito do ateu.

Lembro-me que Paulo Francis, um leitor respeitável, de Marx inclusive, observou que Marx nunca levou em conta "o cerne incivilizado" do ser humano, que Freud apontou. Francis observa ainda que esse cerne é intratável. É inconsciente mas, nem por isso, menos atuante. A gente lê sobre o "cerne incivilizado" todos os dias, nos jornais. Marx não levava isso em conta, acreditava no homem e se preocupava mais com a tentativa de uma elucidação possível sobre um processo econômico qualquer.

Imaginei então Carroll lendo, por exemplo, O Capital. Ele poderia, também por exemplo, pegar a teoria da mais-valia e, como dizem os paulistas, virá-la de ponta-cabeça. Poderia provar o contrário. Ou que não funciona assim, ou que trata-se de outra coisa. Seria, claro, uma brincadeira. Mas as brincadeiras de Carroll são de uma lógica afiada e demonstram, como eu já disse, que a lógica, nas mãos de Carroll, pode ser usada para provar qualquer coisa.

Os enunciados de Marx baseiam-se em lógica formal. Ou em lógica humanitária, cristã. Ao famoso "a cada um, conforme suas necessidades; de cada um, conforme suas capacidades", Carroll poderia responder provando que a única capacidade que ele tinha era a de aumentar suas necessidades, entre elas a necessidade de aumentar a própria capacidade, de forma que não gostaria de pensar sobre isso ou, talvez, provar logicamente que tanto suas capacidades quanto suas necessidades são imensuráveis, não há como medi-las. Carroll era, ou é, um perigo.

Pensando nessas bobagens, eu quis fazer minha brincadeira particular e colocar ambos, Marx e Carroll, como adversários. Não eram, na verdade. Mas escrever é brincar, ainda que brincar não seja escrever, como diria o gato de Cheshire.

Guga Schultze
Belo Horizonte, 19/9/2007

 

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