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Sexta-feira, 2/11/2007
O óbvio ululante, de Nelson Rodrigues
Rafael Rodrigues

A decisão de escrever uma resenha sobre O óbvio ululante (Agir, 2007, 448 págs.), de Nelson Rodrigues, foi tomada assim que iniciei a leitura do livro. Os textos que o compõem, uma seleção da coluna "Confissões", publicados no jornal O Globo entre 1967 e 1968 (mais duas crônicas publicadas na coluna "Memórias", no Correio da Manhã, em 1967), são exemplos de que um escritor pode, sim, ser engraçado, melancólico, irônico e crítico ao mesmo tempo, em seus textos. A impressão que se tem, ao ler as crônicas de O óbvio ululante, é a de que no mesmo momento em que há esperança, não há por quê lutar. É como se um boxeador pedisse para seu treinador jogar a toalha, mas não a deixasse tocar o chão e voltasse à luta logo em seguida. Simplesmente incrível e inacreditável. Para tanto, é necessário ser gênio. E poucos podem ser considerados gênio. Nelson Rodrigues pode.

Ao avançar a leitura, um problema começou a se desenvolver. Como resenhar um livro que tem parágrafos e mais parágrafos merecedores de citação sem ficar angustiado por não poder citá-los todos? Afinal, é uma resenha, não uma reprodução do livro.

Difícil. Ainda mais quando lemos algo assim:

"O trágico da nossa época ou, melhor dizendo, do Brasil atual, é que o idiota mudou até fisicamente. Não faz apenas o curso primário, como no passado. Estuda, forma-se, lê, sabe. Põe os melhores ternos, as melhores gravatas, os sapatos mais impecáveis. Nas recepções do Itamaraty, as casacas vestem os idiotas. E mais: - eles têm as melhores mulheres e usam mais condecorações do que um arquiduque austríaco."

Isso foi escrito há 39 anos, minhas senhoras e meus senhores. 39 anos! E, nesse caso, Nelson fala do idiota que, segundo o Houaiss: "diz-se de ou pessoa pretensiosa, vaidosa, tola". Ele tinha razão quando escreveu a crônica e continua tendo hoje.

As crônicas reunidas no livro não se limitam à crítica social. Nelson Rodrigues faz comentários sobre amigos (Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Vinicius de Moraes, entre outros), literatura, política, futebol e, é claro, sobre si mesmo. Aliás, dizer que Nelson escrevia "sobre si mesmo" é uma redundância, pois ele consegue, como ninguém, colocar-se inteiro em tudo que escreve, mesmo que aparentemente não esteja lá, no texto. Nelson Rodrigues não escrevia por escrever, ou para ganhar dinheiro (ele ganhava dinheiro com o que escrevia, o que é totalmente difentente de escrever para ganhar dinheiro). Nelson Rodrigues escrevia porque tinha de escrever. Porque precisava disso para manter-se vivo.

É mesmo impressionante como ele conseguia, em uma única crônica, falar sobre tantos assuntos. Em "Na escola pública, minha merenda foi uma só, imutável: - banana", Nelson começa falando sobre um amigo erudito: "E eu fico a resmungar, na irritação da minha impotência: 'Como sabe, como lê, como cita!'" Em seguida, faz uma crítica a essa obsessão do amigo pelo conhecimento ou pela quantidade de saberes: "Por tudo que sei da vida, dos homens, deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a releitura." Depois, faz piada: "Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo: perguntou-me: 'O que é que você leu?' Respondi: 'Dostoievski.' Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: 'Que mais?' E eu: 'Dostoievski.' Teimou: 'Só?' Repeti: 'Dostoievski.' O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada." E ensina: "Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski".

Linhas depois, Nelson lembra da infância, tema recorrente em suas "Confissões". É quando ele fala da banana que levava todos os dias para a escola, como merenda. E de quando ele teve vergonha da merenda. "No terceiro dia [de aula], comecei a ter vergonha da banana. (...) Ao mesmo tempo que me envergonhava da banana, tinha-lhe pena. Pena da banana. De vez em quando, faltava dinheiro em casa. Banana custava um vintém. E eu ia para a escola sem merenda. Na hora do recreio, rodava pelo pátio, errante e perdido de fome."

O tempo de escola não traz muitas boas lembranças a Nelson Rodrigues. E, arrisco dizer, talvez venha daí, desse tempo, a crueldade de boa parte de suas narrativas. Sua professora era terrível, uma megera que o fazia passar as mais variadas humilhações na frente de todos os colegas. Como no dia em que grita, diante de toda a classe: "Eu sabia! Eu sabia! Tem piolhos, lêndeas!"

Mais conhecido pelas peças e contos polêmicos (alguns ainda chamam seus textos de "amorais"), Nelson Rodrigues era, no fundo, um romântico: "Tudo é falta de amor. O câncer no seio ou qualquer outra forma de câncer. É falta de amor. As lesões do sentimento. A crueldade. Tudo, tudo falta de amor." Um homem que não tinha vergonha de sua sinceridade nem de sua própria história. Nelson não deixava de falar o que quer que fosse, de quem quer que fosse. Criticava e elogiava, sem demagogia, sem troca de favores.

Considerado por muitos como o maior dramaturgo da história do teatro brasileiro, Nelson Rodrigues é exímio prosador. Suas memórias em forma de crônicas em O óbvio ululante são prova cabal disso. Suas peças têm maior destaque por serem, até hoje, alvo de polêmicas. Mas sua prosa (mais especificamente suas crônicas e romances, já que os contos são bastante populares, justamente por também serem polêmicos) certamente terá o destaque merecido, cedo ou tarde. Nelson Rodrigues é um escritor completo, poderíamos dizer. Afinal, foi crítico, dramaturgo, cronista (social e esportivo), contista e romancista. E foi, no mínimo, bom em todas as vertentes. Não são muitos os escritores que podem se vangloriar de tal pluraridade.

Nelson Rodrigues pode.

Para ir além





Rafael Rodrigues
Feira de Santana, 2/11/2007

 

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