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Terça-feira, 16/10/2007
Ensino Inferior
Diogo Salles

Enquanto a maioria das pessoas olha com saudosismo para os tempos de faculdade, de quando eram estagiários, das festas etc., eu não tenho saudade alguma desse tempo. Pelo contrário, foi um dos períodos mais confusos da minha vida. Quatro anos de estagnações e incertezas em uma modorrenta faculdade de publicidade que pouco me acrescentou. Eu não gostaria de voltar a viver isso de novo nem aqui nem na... faculdade. Portanto não serei pretensioso em entrar em discussões acadêmicas. Os colunistas do Digestivo podem dissecar esse tema muito melhor do que eu. Prefiro abordá-lo traçando um paralelo entre a limitação do ensino superior que tive com a minha própria limitação como aluno - que acreditava ser a faculdade a porta de entrada para o mercado de trabalho. Vamos lá.

Antes de ingressar na faculdade, a aptidão para o desenho era uma referência muito vaga para que eu pudesse escolher uma profissão, mas era a única referência que tinha. Assim, resolvi cursar publicidade, imaginando que fosse me tornar um grande diretor de arte de uma grande agência. Imaginava que desenharia grandes layouts, que criaria campanhas de sucesso etc. O talento para desenhar seria a minha ferramenta chave nesse ambicioso e sofisticado plano.

Ao final dos quatro anos de curso, não havia um único indício de que o tal plano tinha sequer saído do lugar. Meus caminhos já eram outros e o fim da faculdade foi um imenso alívio. De quem era a culpa? Dos professores? Do curso? Minha? O caminho mais fácil é sempre partir para a caça às bruxas, mas não vou cair nessa tentação tipicamente brasileira. Meu fracasso na vida universitária, na verdade, foi uma somatória de fatores. O ensino era fraco e não exigia grande esforço do aluno. Excetuando-se por algumas matérias como Cinema (que hoje ajuda muito no meu trabalho de quadrinhos), Produção Publicitária e Rádio e TV, tudo era muito vago e sem consistência. Os professores? Alguns bons, alguns nem tanto. Quanto aos alunos, nunca se preocuparam em demonstrar o mínimo interesse. Tudo bem que os professores (salvo raras exceções) não motivavam, mas isso não justifica tanto desinteresse. Tudo sempre caminhou no mais absoluto descaso de ambas as partes. Pudera. Às vezes eu me perguntava o que fazia lá, se eu nem gostava de publicidade. Provável que vários pensassem assim também. Não por acaso, vejo hoje a maioria dos meus colegas trabalhando em outras áreas. A conclusão a que se chega é que, na faculdade, o aluno pode optar por aprender. É como se o aprendizado fosse ponto facultativo. Eu optei por não aprender e, mesmo assim, passei em todos os semestres, ainda que mediocremente. Pode parecer uma heresia, mas sinto vergonha de ter passado.

Naquele longínquo final de século XX, as mensalidades custavam, em média, 1/4 do que custam hoje. Tudo bem, as universidades estão mais organizadas hoje, com suas catracas eletrônicas, sistemas informatizados e equipamentos de última geração. Tudo muito bonito. Mas será que o ensino melhorou? Será que investiram mais nos professores? Mesmo que isso tenha acontecido, é de se estranhar que hoje a mensalidade de um curso de publicidade custe de cinco a seis salários mínimos. Aqui entre nós, é essa "inflação" que cobre os altos investimentos em propagandas televisivas e na construção de novas lanchonetes, lojas, estacionamentos etc. O ensino - que já não era muito importante antes - hoje parece ser irrelevante. O que parece importar é se o aluno pode pagar a mensalidade, pra poder usufruir de todos os confortos e instalações da faculdade. Não por acaso, a sensação é de se tratar de um shopping center ou de um clube, e não de uma faculdade.

Tudo parece girar em torno do lucro nesse enorme mercadão de cursos que se enraizou. A profusão de novos cursos alimenta ainda mais a busca incessante pelas gordas mensalidades. Ao contrário dos cursos de medicina, engenharia, direito ou administração (o preferido dos indecisos), cursos como design gráfico, moda, ou mesmo publicidade são áreas que o profissional não depende necessariamente de uma formação acadêmica. Mas as mensalidades e a duração dos cursos garantem muitos lucros para as instituições. Daria muito bem para cumprir um curso de publicidade em dois anos, no máximo. Ok, o MEC exige o mínimo de quatro anos. Não é à toa que as instituições a enxertam matérias para completar a grade. A máxima que diz que "dois meses trabalhando na área (prática) valem mais que dois anos de faculdade (que é só teoria)" é surradíssima, mas ainda é verdadeira e sólida como uma rocha.

Os quatro anos em que estive na faculdade foram os mais longos da minha vida. A sensação era a de que eu estava ao volante de um carro quebrado no meio do deserto. Claro que não deveria ter sido assim, mas foi. Não aprendi nada de publicidade na faculdade, mas foi lá que tive minha lição de vida. Fez-me enxergar todas as nossas mazelas. Fez-me ver o quanto o Brasil é desajustado em todas as suas esferas.

Todos já passaram pela encruzilhada dos vestibulandos: "qual profissão escolher?" E todos optam pela área em que mostram maior aptidão, seguindo em frente. Procuram estágios e vão trilhando o seu caminho. Tudo parece simples e as oportunidades vão aparecendo. Por isso o começo pra quem quer ser cartunista é mais difícil do que o convencional. Eu também passei por essa encruzilhada e fiz minha escolha, obviamente equivocada. Não existe faculdade de Humor ou de Cartum. Nessa etapa da vida, eu ainda não sabia que a faculdade seria um estágio da vida. Eu nem mesmo tinha consciência de que deveria escolher um caminho para trilhar. O processo se alterou depois, quando minha vocação me "escolheu". Não tive como escapar. Foi uma descoberta bastante complexa. Só cheguei nela depois de muitos tombos.

Se você não tem nenhum artista entre seus familiares, será quase um martírio fazê-los entender. Ser cartunista é, antes de tudo, convencimento. "Como você vai ganhar dinheiro? Ficando em casa desenhando?" O que se pode dizer numa hora dessas? "Sim, eu trabalho em casa. Não, eu não tenho salário." Se nem eu mesmo conseguia me convencer de que esse era o caminho certo, como poderia convencer aos outros? Eu não tinha argumentos nem desenhos para confrontar ninguém. Era visto como mais um vagabundo, subproduto de uma geração alienada que cresceu sob os escombros da ditadura.

Antes de me tornar cartunista, eu já era uma caricatura de mim mesmo. E eu entendia o lado das pessoas que se mostravam preocupadas com a minha decisão. Era difícil para elas enxergarem um futuro pra mim naquela época. Mas eu, ao contrário, enxergava um horizonte de possibilidades. Durante a faculdade, lembro-me muito bem de como se deu esta decisão em minha vida. Alternando o marasmo das aulas com trabalhos temporários em eventos, usei as horas vagas para correr atrás desse sonho. Trancado no quarto, munido de um caderno e um lápis, comecei a rascunhar minhas primeiras charges e caricaturas. Depois de preencher todas as páginas do caderno, percebi que isso era a única coisa que eu podia fazer bem. Dali em diante, aquele seria o meu trabalho. Na faculdade, o que importava era apenas passar.

Sei que deve ser difícil aceitar que alguém fique em casa, de bermuda e chinelo o dia todo, mesmo que se trabalhe sem hora para terminar e que não se tenha o luxo de passar os finais de semana na praia. Sei também que isso está mudando, mas ainda tem muita gente que acha que "trabalho" requer roupa social, pasta 007 e um escritório. Não importa o que você faça lá. Na nossa sociedade, até cabide de emprego de repartição pública vira workaholic perto de artista. Injusto? Muito. Mas é um bom tema para um cartum, não acha?

Diogo Salles
São Paulo, 16/10/2007

 

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