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Terça-feira, 9/10/2007
Quinze anos conversando com os leitores
Luis Eduardo Matta

No último dia 22 de setembro comemorei, com algumas poucas pessoas próximas, nas dependências da XIII Bienal do Livro do Rio de Janeiro, os quinze anos da assinatura do contrato de publicação do meu primeiro livro, Conexão Beirute-Teeran, que aconteceu, precisamente, em 22 de setembro de 1992. Naquela ocasião eu, por não haver ainda completado dezoito anos, não possuía competência legal para assinar contratos, e foi minha mãe quem teve de fazê-lo em meu nome. Ter começado em 1992 não deixa de ser espantoso, se considerarmos que aquele foi, de acordo com a pesquisa anual sobre produção e vendas do setor editorial brasileiro promovida desde 1990 pela Câmara Brasileira do Livro, um ano particularmente difícil para o mercado livreiro. O único, desde que a pesquisa começou a ser realizada, no qual o número de exemplares produzidos e vendidos no Brasil ficou abaixo de duzentos milhões.

Nesses quinze anos o mercado mudou bastante: editoras então conceituadas minguaram ou naufragaram, enquanto outras nasceram timidamente e se tornaram gigantes; houve uma sensível melhora no acabamento gráfico dos livros publicados mesmo por casas pequenas, em grande parte por influência do benfazejo pioneirismo da Companhia das Letras que, desde sempre, primou pela excelência das suas edições; e feiras, bienais, festivais e salões do livro multiplicaram-se pelo Brasil. Também o advento da internet a partir da segunda metade da década de 1990 alterou positivamente a fisionomia e o ritmo do mercado, tornando escritores mais visíveis e promovendo uma dinamização na divulgação e distribuição dos livros e na criação de uma nova mídia literária que hoje, longe de competir, complementa a imprensa tradicional, enriquecendo o panorama cultural brasileiro. A situação de escritores e editores, mesmo os iniciantes, é, hoje, muito mais confortável do que era no início da década de 1990, apesar das inúmeras dificuldades ainda existentes. É como costumo dizer: se num momento recessivo e adverso como foi o biênio 1992/1993, imerso numa inflação desenfreada e sentindo ainda as funestas conseqüências do Plano Collor, foi possível a um autor desconhecido de 17/18 anos como eu estrear na literatura, hoje, com o mercado mais oxigenado, dinâmico e diversificado, as chances são ainda maiores. Desde que se tenha, é lógico, um bom trabalho em mãos e uma combinação de audácia, paciência, autocrítica, autoconfiança e, sobretudo, muita persistência.

Nesses quinze anos aprendi muito. Desde 1992, mesmo durante o período em que não publiquei, venho acompanhando com atenção e interesse o que acontece no mercado editorial, dentro e fora do Brasil, chegando a reunir um arquivo considerável dedicado ao assunto, que consulto regularmente. Do mesmo modo, tive a sorte de conhecer profissionais experientes que me forneceram conselhos e orientações inestimáveis, a começar pela minha primeira editora, Maria Chaves de Mello - que foi quem, por exemplo, pela primeira vez me falou em detalhes sobre a problemática relação existente entre editoras e livrarias -, e passando por agentes literários, livreiros, jornalistas, assessores de imprensa, críticos, editores e escritores que, generosamente, me relataram suas reminiscências, suas impressões e suas perspectivas a respeito do mundo do livro. No entanto, foi o convívio com os leitores, encontrados ao acaso em livrarias, bibliotecas, em reuniões informais ou em eventos sociais, literários ou culturais, que me ensinou mais, ajudando-me, sobretudo, a enxergar a realidade com espantosa e incômoda nitidez.

Muitos dos estudiosos do eterno dilema do livro e da leitura no Brasil equivocam-se ao apontar as livrarias como a ponta final da cadeia livreira quando, na verdade, essa posição é ocupada pelos compradores de livros. A livraria é não mais do que um negócio, cujo objetivo principal é atender a uma clientela. Se ela fugir demais a esse papel, sucumbirá rapidamente diante dos altos custos envolvidos na manutenção de um ponto comercial, de impostos e de um quadro de funcionários, por menor que seja. É temerário pensar que o livreiro deve ter, acima de tudo, uma função social e cultural. Essa função cabe, em primeiro lugar, à biblioteca pública que, no Brasil, é tão valorizada quanto a ética. Então quem, ainda que indiretamente, determina os rumos da ciranda editorial são, em boa medida, os leitores, o famigerado grupo que os eternos adeptos das teorias da conspiração adoram rotular pejorativamente de "o mercado", como se este fosse uma medonha entidade sobrenatural de mil cabeças, esquecendo-se de que o mercado nada mais é do que o conjunto da sociedade. Ou seja: nós somos o mercado. Ouvindo o que os leitores têm a dizer - e eu tenho feito isso permanentemente nesses quinze anos, com atenção especial aos leitores de literatura - entende-se por que o mundo literário é como é e muitas questões tormentosas que parecem inexplicáveis ou insolúveis são esclarecidas; as respostas tornam-se tão óbvias, que chega a ser constrangedor.

Anos atrás, um amigo meu, então cursando a Faculdade de Direito, me contou que um dos seus professores, ao comentar a situação política e econômica do Brasil durante uma aula, afirmara, em tom humorado, que a primeira palavra que ele aprendera na vida fora "mamãe" e que as duas seguintes foram "crise" e "transição". A maioria dos brasileiros esclarecidos, creio, entende o sentido subjacente dessa declaração, uma vez que o Brasil ainda não conseguiu vencer dilemas históricos, com os quais se defronta há décadas, parecendo haver se conformado com a designação de "país do futuro". Traçando um paralelo com o mundo dos escritores, posso afirmar que há quinze anos, das muitas coisas que vejo serem repetidas à exaustão entre eles, duas são notórias: a primeira é a de que Buenos Aires tem mais livrarias do que o Brasil inteiro. Não sei exatamente quando surgiu essa máxima - creio que ela tem suas origens no início do século XX, quando Buenos Aires era a cidade mais desenvolvida da América do Sul e o Brasil um país cuja esmagadora maioria da população era rural e totalmente analfabeta, em contraste com os argentinos que, já naquela época, desfrutavam de um sistema educacional de excelência. Seja como for, hoje o Brasil possui mais do que o quádruplo de livrarias de Buenos Aires e arredores e ouvi dizer, embora não tenha certeza, que São Paulo já igualou ou mesmo superou a capital argentina nesse ranking.

Outra declaração que os escritores adoram repetir - e é aqui que eu quero chegar - é a de que não é possível viver de literatura no Brasil, o que não é lá uma verdade absoluta. Eu diria que, embora seja muito difícil viver de literatura no Brasil (como na maioria dos países, aliás), isso não é propriamente impossível. E vou mais longe: o Brasil, cujo mercado editorial é maior do que o de toda a América espanhola reunida e encontra-se entre os dez maiores do mundo, à frente, inclusive, de muitas nações desenvolvidas da Europa e onde há um púbico leitor potencial enorme, é um dos países nos quais um escritor tem mais probabilidades de viver de seu ofício. E se isso não acontece, há uma razão principal, que eu descobri justamente por meio das conversas com os leitores: a maioria das pessoas que compram livros no Brasil despreza ou abomina deliberadamente a literatura brasileira adulta, clássica ou contemporânea.

É uma constatação triste. Mas basta visitar uma livraria e observar os títulos em destaque nas seções de lançamentos ou de mais vendidos para perceber que os autores brasileiros são minoria. O homem que mais escreveu livros no mundo, José Carlos Ryoki Inoue - um brasileiro filho de pai japonês, que entrou para o Guinness Book depois de publicar mais de mil títulos em cinco anos -, levou um bom tempo assinando as suas obras com pseudônimos estrangeiros tais como Jeff Taylor, James Monroe, George Fletcher ou Woodrow McDonald, a fim de estimular as vendas. De acordo com uma entrevista que o escritor concedeu ao programa Jô Soares Onze e Meia no primeiro semestre de 1992 e que está devidamente catalogada nos meus arquivos, os livros eram vendidos em bancas de jornais e as tiragens chegavam a atingir dez mil exemplares por título. Imagino que, caso estivessem sendo publicados hoje, o preço de cada um estaria numa faixa entre cinco e dez reais, que é mais ou menos quanto custa os livrinhos populares publicados atualmente, similares aos escritos por Ryoki Inoue. Ou seja: eles não eram caros, pelo contrário. A distribuição, lembro-me, era excelente, pelo menos no Rio de Janeiro. Donde se conclui que, a juízo do autor e/ou dos seus editores, a única razão que poderia levar os potenciais leitores a não se interessar pelos livros seria gravar um nome brasileiro na capa e na lombada, daí a opção pelos pseudônimos.

E os riscos de isso acontecer eram realmente concretos. Tomemos um outro caso, o de Daniel Silva, escritor norte-americano de thrillers como A espiã improvável e O artista da morte que, por conta do nome português (ele tem ascendência portuguesa, me parece) deu trabalho a muitos livreiros conhecidos meus, que penaram para convencer os clientes de que não, ele, a despeito do nome, não era brasileiro, que era norte-americano e que seus livros eram thrillers, etc. Nos muitos depoimentos que colhi de leitores, as definições que eu ouvia sobre a nossa literatura eram, com algumas exceções, bem pouco lisonjeiras. Iam de "chata", "lenta", "hermética", "complicada", "arrastada", até "obcecada pela sarjeta"(?), "autor brasileiro não sabe contar uma boa história"(?!), "depressiva", "enjoada", e impropérios afins. Havia, é lógico, alguns escritores brasileiros que as pessoas eventualmente liam. Eram, geralmente, nomes consagrados como Paulo Coelho, Jorge Amado, Rubem Fonseca, João Ubaldo Ribeiro (cada vez menos procurados, diga-se de passagem) Chico Buarque, Jô Soares, Luis Fernando Verissimo e, em escala menor, Luiz Alfredo Garcia-Roza, Carlos Heitor Cony e a Lya Luft de sua nova fase, após o lançamento de Perdas e ganhos. Foram raras as vezes nas quais encontrei leitores que conhecessem e gostassem verdadeiramente da literatura brasileira. E estes, em geral, tinham um perfil mais intelectualizado, um gosto estético mais refinado e pareciam encarar a leitura, acima de tudo, como um exercício de reflexão e de aprimoramento existencial e cultural. Era uma pequena elite, que estava longe de ser representativa do quadro de leitores brasileiros.

Não sei como se abriu esse oceano entre os leitores e a literatura brasileira. Tenho várias teorias, mas nada conclusivo. Tudo o que sei é que o oceano existe. Perguntem aos editores e eles lhes dirão o quão difícil é colocar nas livrarias uma quantidade razoável de exemplares do lançamento de um escritor brasileiro não-consagrado. Quando isso acontece, as devoluções costumam ser rápidas e consideráveis. Este é, inclusive, um dos motivos pelos quais as editoras demonstram pouco interesse em publicar novos autores nacionais: eles dificilmente dão retorno. Ao mesmo tempo, essas mesmas editoras não pensam duas vezes antes de pagar pequenas fortunas por títulos estrangeiros, que têm alta rotatividade nas livrarias. Muitos desses livros vendem dezenas de milhares de exemplares e garantiriam a sobrevivência de seus autores, caso estes fossem brasileiros e embolsassem apenas o dinheiro das vendas de suas obras no Brasil. Isto porque o nosso mercado editorial, em números absolutos, não é tão pequeno quanto se imagina. Segundo a Câmara Brasileira do Livro, gira em torno de vinte milhões de compradores de livros. Ou seja: há um contingente expressivo de pessoas lendo no país. O problema é que a maioria passa muito longe da literatura brasileira.

Acredito que essa imagem negativa seja o maior obstáculo que os escritores brasileiros precisam enfrentar. A pergunta é: como? A saída mais segura e eficaz é, logicamente, o aumento do número de leitores, afinal vinte milhões numa população de quase duzentos milhões é muito pouco. Juro que não tenho resposta para essa questão, apesar de há alguns anos me debruçar sobre ela. Uma pista talvez esteja num comentário publicado no final de setembro por Lucas Murtinho no seu excelente blog Bom dia, França. No texto, Murtinho aproveita um artigo escrito por Stephen King para a The New York Times Book Review a respeito da precária situação do conto norte-americano na atualidade, para traçar um paralelo com a literatura brasileira. Valendo-se da ponderação e da elegância que lhe são características, Murtinho questiona se muitos dos nossos escritores (vejam bem: não são todos e é apenas uma indagação que ele faz, não uma conclusão a que chega) não estariam produzindo uma prosa demasiado auto-referente e, dessa maneira, escrevendo apenas para si e seus pares, desprezando "a reação alheia em nome da busca pretensiosa pela obra-prima que talvez só ele compreenderá (...)".

Estaria, de fato, faltando essa comunicação maior entre os escritores e o público brasileiros? É uma colocação que, a meu juízo, merece uma reflexão aprofundada. Pois já não convence mais a surrada cantilena de que "o Brasil é assim mesmo, o povo é burro e não me entende ou não está à altura do meu talento". A questão é mais complexa e todos nós, diretamente envolvidos com a cadeia do livro, devemos nos preocupar com ela a fim de não permitir que o avanço progressivo da literatura estrangeira seja nas prateleiras das livrarias, seja na preferência dos leitores acabe asfixiando a literatura brasileira e relegando-a a uma irremediável obscuridade. Do contrário, correremos o risco de perder um importante canal de reflexão sobre a nossa realidade, de registro da nossa memória e de exercício da nossa língua.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 9/10/2007

 

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