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Terça-feira, 13/11/2007
Armadilhas da criação literária
Luis Eduardo Matta

Numa tarde de 1994, eu almoçava com um tio numa mesa ao ar-livre de um dos muitos restaurantes da avenida Atlântica, quando os ocupantes da mesa vizinha iniciaram uma conversa acalorada sobre futebol. Estávamos, para ser mais preciso, em junho de 1994, em plena Copa do Mundo dos Estados Unidos, que acabaria sendo vencida pelo Brasil. Eu me lembro que, um ou dois dias antes, o Brasil tinha empatado com a Suécia em 1 X 1 e os cidadãos que discutiam feio ao meu lado estavam inconformados com a "frieza" da seleção de Carlos Alberto Parreira que priorizava a técnica em detrimento do "futebol arte". Ao mesmo tempo, todos diziam ter a receita certa para a escalação e movimentação do time e pareciam tão seguros de suas opiniões que meu tio, num dado momento, virou-se para eles e perguntou, em tom de galhofa: "Se vocês entendem tanto de futebol e sabem como fazer para o Brasil conquistar essa Copa, por que não vão aos Estados Unidos tomar o lugar do Parreira? O que vocês ainda estão fazendo aqui, em Copacabana, tomando chope e beliscando queijo e azeitona enquanto a glória do futebol brasileiro está em risco?" Os homens, até aquele momento exaltados, murcharam na hora e, pouco tempo depois, pediram a conta e foram embora, para sorte nossa que pudemos, enfim, comer em paz.

Essa é uma característica comum a uma boa parte dos brasileiros. Muitos acreditam que, por serem aficionados por futebol, conhecem o esporte melhor do que os profissionais do ramo. Fato semelhante ocorre na literatura. Do mesmo modo que todo torcedor brasileiro se considera um técnico de futebol em potencial, muitos dos apaixonados pelos livros acham que podem se tornar escritores. Mal sabem eles que a criação literária é uma epopéia extenuante e complicada, que exige tanta dedicação, trabalho e dores de cabeça como qualquer ofício, com a agravante do intenso envolvimento afetivo do autor com o seu texto, que, não raro, conduz a uma espécie de esgotamento. Isso porque a criação, quando exercida plenamente e com seriedade, é um processo violento de descarga emocional, criativa e intelectual e não são todas as pessoas que agüentam o desafio. Ainda assim, existe um certo glamour em torno da escrita que seduz muitas pessoas, tomadas pela idéia de que basta saber escrever e ter lido alguns livros para conseguir dar forma a uma obra literária. E muitos desses incautos costumam se aventurar por formatos e gêneros extremamente traiçoeiros, os quais, à primeira vista, parecem simples e fáceis quando, na verdade, escondem uma complexidade incrível que somente a prática regular da escrita aliada a uma autocrítica firme e equilibrada conseguem revelar. É o que eu costumo chamar de armadilhas da criação literária.

Comecemos pelo conto, que é uma das mais capciosas. Vivemos, hoje, uma espécie de febre do conto no Brasil, o que está longe de ser ruim. O conto é uma modalidade narrativa admirável, que consagrou talentos extraordinários ao longo dos tempos e cuja estrutura, concisa e sem espaço para artifícios e embromações autorais, incumbiu-se de eternizar histórias fabulosas, que jamais teriam o mesmo impacto caso fossem desenvolvidas em narrativas extensas. Eu próprio sou um leitor fiel e apaixonado de contos, embora nunca tenha, como ficcionista, me aventurado pelo formato, por assumido reconhecimento da minha incompetência em estruturar um bom enredo num texto breve. Eu e a concisão somos inimigos de morte há muitos anos e ela tem me derrotado continuamente, a despeito dos meus reiterados esforços em, ao menos, atenuar a prolixidade da minha escrita.

É justamente na economia de palavras inerentes ao conto que se esconde o seu lado obscuro, onde está preparada a sua tocaia. Por se tratar de textos breves, muita gente supõe que é menos trabalhoso escrevê-los do que a um romance. Pura ilusão. O conto, precisamente por essa compleição enxuta, exige do autor uma atenção permanente e uma capacidade de sintetizar em uma ou duas frases o que num romance poderia ser confortavelmente narrado em dez parágrafos. O conto não permite lacunas. Cada sílaba, cada vírgula, cada mísera palavra possui uma importância fundamental para que a história adquira a intensidade necessária que irá justificar a sua leitura. No entanto, pelo que tenho lido ultimamente, percebo que alguns autores ignoram isso e optam por redigir contos como se estes fossem não mais do que fragmentos sem nexo de narrativas mais longas e o resultado, muitas vezes, acaba sendo de decepcionante a assustador. Ao escrever com desleixo, esses autores evidenciam, sem querer, um íntimo menosprezo pelo formato, ao considerá-lo um caminho rápido para dar forma a um livro. Não param para pensar que grandes contos da literatura brasileira como "Missa do Galo", "Feliz Ano Novo" e "O Monstro" não seriam tão perfeitos na sua concepção, sentido e acabamento, caso os autores tivessem se alongado na redação, fazendo, assim, com que as histórias se perdessem em intensidade e fôlego. Sim, fôlego. Pois o conto é um gênero de fôlego. Um fôlego, a bem da verdade, diferente do esperado num romance e que demanda máxima concentração do autor. Vejo o bom contista como um enxadrista compenetrado e minucioso. Uma única jogada equivocada, um único pequeno descuido que pode ser não mais do que uma palavra mal colocada e o trabalho corre o risco de ficar irremediavelmente comprometido, de receber um xeque-mate. Já o bom romancista seria o construtor de um castelo de cartas, um obstinado que se lança numa jornada longa com persistência, coerência e paciência suficientes para levar a cabo o seu projeto até, enfim, vê-lo pronto e em conformidade com o planejamento original.

Outra armadilha muito comum é a literatura infanto-juvenil. Trata-se de outra seara que dá aos desavisados uma falsa ilusão de facilidade. Muitos imaginam que, por terem como público potencial leitores muito jovens e, em tese, menos exigentes em relação à linguagem e à técnica narrativas, não precisam escrever com o mesmo cuidado e requinte devotados à ficção adulta. Some-se a isso a visão débil, estereotipada e um tanto condescendente que uma parcela expressiva da sociedade alimenta em relação às crianças e aos adolescentes, como se estes fossem seres totalmente desprovidos de inteligência, personalidade e sensibilidade e temos o cenário pronto para a catástrofe. É impressionante e aterradora a quantidade de literatura "tatibitate", "gugu-dadá" e "Coé? Hu-huh!" destinada ao público infanto-juvenil nas prateleiras das livrarias e nos catálogos de editoras. Nos últimos anos, andei lendo muitos desses livros e confesso que não entendo o que se passa na cabeça de certos autores. O que eles pensam que estão fazendo? Que tipo de público acham que irão atingir com uma literatura que flerta com a banalidade e a puerilidade narrativa, quando não mergulha de corpo inteiro nelas? Por que se incumbem de inventar enredos sem pé nem cabeça, com personagens mais rasos do que um azulejo, com umas situações totalmente sem sentido e tentando estabelecer, a qualquer custo, uma identificação com os jovens leitores, sempre a partir dos estereótipos mais ridículos que se têm deles? Juro que não vou me surpreender se, daqui a pouco, algum autor resolver apelar para o internetês e publicar um "liVRuh mtt fofuh IxCrItUh aXiM pq axaH ki a gLeRah KeR eH leh cuMu si fla na NeT, neh? XD ^^") haushuahauhsas ;] ;++,"."

A coisa costuma piorar quando os ditos autores decidem ir além e usar o seu trabalho para objetivos, digamos, mais "nobres", abordando de modo forçado e excessivamente didático temas caros à sociedade contemporânea e se concentrando, assim, num proselitismo enfadonho, em prejuízo total do brilho da trama. O engajamento na ficção é, a princípio, muito bem-vindo, mas é preciso que o autor tenha boas doses de talento e discernimento a fim de incorporar suas idéias de maneira natural e sutil à trama, criando uma simbiose atraente entre ambas para que um livro de ficção não se transforme numa cartilha. Estabelecer uma comunicação franca com crianças e adolescentes através da narrativa literária é uma tarefa árdua, que requer um cuidado, muitas vezes, superior ao que se costuma ter com a ficção adulta. E isso é particularmente verdade nos dias atuais, nos quais os apelos da tecnologia e da imagem exercem uma concorrência pesada com os livros. O primeiro passo para isso é, naturalmente, conhecer os jovens e aceitar a sua pluralidade em vez de reduzi-los a um clichê. O segundo é não lhes subestimar, de maneira alguma, a inteligência e o juízo crítico. E o terceiro é criar uma trama atraente que, além de gerar uma identificação nesse leitor debutante e em formação, seja capaz de surpreendê-lo de alguma maneira. A criatividade, a cultura, a técnica e o bom manejo do idioma se incumbirão do resto.

De todas as armadilhas da ficção, no entanto, a que sempre me chamou mais a atenção é a do romance policial/de mistério/suspense. A literatura de entretenimento, como um todo, já é uma grande armadilha, mas a policial é a que tem feito mais vítimas (sem trocadilho, por favor), inclusive no Brasil. É difícil não ficar abismado diante da infinidade de romances policiais ruins disponíveis atualmente. São tramas de mistério pessimamente estruturadas, com personagens para lá de previsíveis, toda sorte de clichês romanescos os mais rasteiros (não confundir com os clichês de linguagem, amplamente utilizados em livros de entretenimento e que, longe de comprometer sua qualidade, são essenciais para imprimir o ritmo necessário ao enredo), anticlímax a cada capítulo, finais imbecis e mal-resolvidos e diálogos paupérrimos são alguns dos ingredientes que, uma vez somados, tornam o leitor um sério candidato a uma indigestão e, se houver engajamento barato metido no meio, com possibilidade de pernoite numa UTI hospitalar. As causas principais desse besteirol policial costumam ser duas. A primeira é a influência do cinema norte-americano. Alguns autores estruturam seus livros como se estivessem roteirizando um desses filmes de ação que são exibidos no Supercine, ignorando que receber influências cinematográficas na literatura é uma coisa (pode ser muito boa, inclusive) e escrever um romance com linguagem de roteiro é outra. A segunda causa é a própria idéia que se tem da concepção de um romance no gênero. Já ouvi mais de um autor dizer, na cara dura, que escrever livros policiais é muito fácil: basta pensar num crime no início da trama, na solução do crime no final e, no meio, tudo se resume a uma combinação de sexo, ação, violência, palavrões e "doses de realidade". Agatha Christie, Georges Simenon e Raymond Chandler devem ter convulsões nos seus túmulos quando atrocidades assim são ditas em tom de verdade divina.

Creio que ainda não foi descoberta uma maneira cortês e, ao mesmo tempo, persuasiva de explicar a essas pessoas que a criação de uma boa trama de entretenimento - o que inclui as policiais - é uma estiva. Quando alguém lê um romance desses e se depara com a linguagem direta, o ritmo ágil e os capítulos de estrutura aparentemente simples, em geral não faz idéia do trabalho monumental que foi concebê-lo. Sei de casos de escritores consagrados no gênero que, após um planejamento exaustivo da trama e de uma primeira versão pronta, reescreveram-na cinco, seis, sete vezes, fazendo contínuas revisões e reformulações e submetendo-a a pareceristas profissionais que fizeram sugestões e observações decisivas para o bom acabamento da obra. Essa empreitada pode levar anos consecutivos de trabalho diário, sem férias, sem qualquer glamour. Não é, definitivamente, uma atividade para diletantes ou para aqueles que encaram a escrita como um hobby divertido para as horas vagas. A própria linguagem de um livro desses exige uma atenção especial do escritor. Ela precisa ser muito trabalhada de modo a ser direta e, ao mesmo tempo, conter pelo menos um pouco de profundidade, que é o que se espera de uma obra literária. Complicado, não? Pois é como costumo dizer: escrever difícil é fácil; o difícil é escrever valendo-se de um vocabulário amplo e uma linguagem elaborada, porém de fácil assimilação.

Minha intenção, com este artigo, não é, de modo algum, desestimular os candidatos a escritor ou desqualificar quem quer que seja. É, isso sim, alertá-los para os rigores da atividade literária, inclusive para que, ao escrever, o façam com mais consciência e segurança. Devemos ter em conta que a aparente inocência do mundo da escrita esconde armadilhas, que a muitos passam despercebidas. Identificá-las e manter-se alerta sobre a própria capacidade de abraçar o ofício, sempre desconfiando daquilo que parece muito fácil são passos importantíssimos para se produzir uma obra ficcional consistente e interessante. Não permitam que a vaidade e a ânsia por notoriedade ofusquem o senso crítico comum a todos nós. E reflitam triplamente antes de escrever um conto policial infanto-juvenil.

Luis Eduardo Matta
Rio de Janeiro, 13/11/2007

 

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